Cheguei cedo e com mesa marcada num cantinho à janela. Assim que vi o balcão vazio – muito bonito – pedi para mudar. Estava naqueles dias de uma tristeza pesada e foi para solitários deprimidos em busca de converseta que se inventaram as cadeiras altas sobre os bares.
Do outro lado, uma jovem que dominava as situações. Lesta no pisco sour, atenta à porta, sorridente, tranquila, conhecedora. Eis alguém que sabe a origem dos bagos do arroz de berbigão – “é feito com carnaroli de Alcácer”. Eis alguém que domina os moluscos insulares: “Escolheu muito bem. Essa lula dos Açores até crua é boa.” Eis o serviço de balcão perfeito.
Tudo o que fez, tudo o que disse durante a refeição, foi na medida certa, no tom certo, com as palavras certas. Ora, isto é raro e bonito. Há um prazer imenso na comida, mas nestes momentos percebe-se como as pessoas marcam os restaurantes. Podemos ficar só a olhá-las como performances numa encenação maior.
O empregado que tirou o pedido, por exemplo, tinha um estilo diferente, pressuroso. Apanhei-o num jantar dias depois, também ao balcão. Falava com uma mão no diafragma e a outra nas costas, como um vassalo de Luís XIV. Fez o que devia ser feito, todavia. Explicou muito bem o processo de cura do presunto culatello – “é usada a bexiga do porco para o envolver” – e não se furtou ao seu prato favorito. “Neste caso, os raviólis são de massa fresca, todas as nossas massas são frescas, e são muito boas. Vêm com o alho francês confitado e cogumelos shitake.”
A qualidade do serviço do Provincia foi tanto mais assinalável quanto o restaurante acabou de reabrir, depois de ter inaugurado em Outubro do ano passado. Esse traço é, contudo, uma característica comum aos irmãos do Grupo Non Basta, onde cabem os dois Pasta Non Basta e também o Memoria. Fui reler a crítica que fiz ao Pasta Non Basta, já depois de ter arrancado com este texto, e também aí sublinhara a entrega dos empregados. Aqui, a questão é premente, uma vez que estamos numa casa de maior ambição, o topo de gama do portefólio. O Provincia tem serviço mais exigente, produto mais caro e mais liberdade para o chef Mário Cardeira.
Do que provei neste almoço, estava tudo bom, da focaccia com massa mãe recheada de mozarela até às citadas lulas. Num nível superior, o ravióli (fresco e caseiro) com alho francês, aipo, cogumelos shitake, e croûtons ensopados num molho verde e cítrico – tudo tratado como joalharia saborosa. Destaque também para o tiramisù, único prato que repete nos outros dois Non Basta, mas que aqui ganha uma camada de textura com a cobertura de amêndoa e chocolate.
Falar também da horta do Grupo Non Basta. De acordo com o seu site e com declarações de um dos sócios, Frederico Seixas, o grupo estará a cultivar parte dos hortícolas com que abastece os seus restaurantes num terreno perto de Lisboa, em modo biológico certificado. Quando se fala tanto de farm to table e se pratica tão pouco, isto é de louvar. Atenção, todavia, aos excessos de linguagem. É fácil de perceber que nem todas as verduras vêm dessa horta. E, portanto, o serviço não deveria comunicar, como aconteceu, “que todos os nossos legumes vêm da nossa horta”. Exemplo: o pimento do molho romanesco, antes do Verão, dificilmente poderia vir de um campo tuga (questionada sobre o assunto, a cozinha admitiu que compra o pimento).
O que me leva para outra questão: ter horta sem ter um menu sazonal, ter horta e pratos com tomate, em Maio (à excepção das pizzas, vá), já faz pouco sentido num restaurante com este posicionamento e este preço.
Em síntese. O que é o Provincia? É um Non Basta superior, mas com o mesmo sentido de hospitalidade e rigor. Muito bonito, informal mas elegante, desenhado para o convívio. Diz o conceito que na cozinha há campo, mas eu gostava que houvesse mais ainda. Menu com tónica mediterrânica e secções autónomas de pizzas (premium, óptima a de culatello) e carnes no fogo (com indicação da origem: clap, clap, clap).
De resto, é irem lá ver. E falar com as pessoas. De preferência ao balcão.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.