À segunda é certo que haverá sangue. No primeiro dia da semana a Dona Judite faz sempre galinha de cabidela. À terça faz chanfana (de vitela, mas a preceito), à quarta pernil assado no forno (serve com feijão e couve cozida), quinta é dia de polvo à lagareiro (pequenino, inteiro, firme, com batatas assadas) e na sexta bacalhau com grão. Ao sábado não sei, confesso, nunca cá pus os pés, e ao domingo a casa fecha.
É claro que também se pode dizer que segunda há bacalhau à minhota, terça lagartos, quarta dobrada com feijão, quinta cozido e sexta bacalhau à lagareiro. Mas isso é outro itinerário. O papel de mesa colado na montra anuncia sempre cinco a seis pratos do dia. Alguns são de dia certo, estes são os meus, e à segunda vou à cabidela se por acaso ando pela Baixa. O carolino chega no ponto, firme sem estar rijo; o sangue ligado sem empapar; a galinha tenra mas não enfarinhada; o vinagre afinado ao mililitro. Quando tudo isto pousa diante de mim numa dose farta por 4,75€, servida a dois passos da maior concentração de armadilhas para turistas desta cidade, acho sempre que testemunhei um milagre às Portas de Santo Antão.
Os pratos do dia certos não fogem dessa regra: mão apurada, dose de tacho, preço antigo. Mas hoje que vos escrevo é segunda, dia de cabidela. Cheguei eram duas e como sempre esperei como toda a gente. As mesas dão para uns 50 assim a olho e rodam umas três vezes a cada almoço. Quem gere esta azáfama com justiça precisa é Carla, o vértice da tradicional santíssima trindade de uma tasca portuguesa: mãe na cozinha, pai ao balcão, filha às mesas. Quando lamento, desamparado, o inédito arroz cozido além da conta, tenho a resposta que mereço: “isso já foi feito no tacho há duas horas, o que é que esperava?”.
Penso então que devia ter olhado um dos 50 relógios de madeira que o pai Américo fez por sua mão e pendurou nas paredes da sua tasca e, vistas as horas, seguido o caminho das batatas fritas às rodelas grandes que levam ao bacalhau à minhota. E suspiro por essa outra mesa de pratos certos e tachadas de conforto onde recebia assim ralhetes se acaso me sentava a desoras. Amanhã é dia de chanfana. A ver se venho mais cedo e trago a minha mãe.
Crítica de José Margarido publicada a 07/12/2017
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