Para lá chegarmos, temos de percorrer a 24 de Julho, um confronto com o passado, nem sempre saudoso. Vindos do Mercado da Ribeira em direcção a Alcântara, encontramos vários templos da noite dos anos 1990, quando a avenida era o centro da movida lisboeta. Eis a antiga Kapital, antro de Santana Lopes e da camisa às riscas; num beco transversal, o Plateau, pista para praticar air guitar com mães e pais em crise de meia-idade; e, antes, o Kremlim, lugar das primeiras pastilhas e de artes marciais.
Hoje, ainda há resquícios dessa noite, mas já falta fulgor. À medida que nos afastamos de Santos, a avenida vai-se degradando em lixo, graffiti e lojas gradeadas. Aqui e ali, entre edifícios devolutos, aparecem comércios singulares (hi-fi britânico, material náutico) e, por fim, lá no meio de coisa nenhuma, este restaurante brasileiro, porventura a melhor comida que os canarinhos já praticaram em Lisboa.
À parte a localização, o Quiçá! é perfeito. Estamos perante aquilo que a designação em voga diria tratar-se de um bistrô brasileiro, com foco na Baía. À frente dos tachos está Frederico Frank, escola francesa e passagens por casas em capitais europeias. Sucede que Frank não veio para Portugal ser artista ou vestir a lapela do fine dining. Viu que faltava em Lisboa um lugar onde se servisse uma moqueca decente, com peixe fresco de mar; ou um bobó com camarão a sério (grande, tenso, saboroso). Fred Frank viu isto e, juntamente com Alessandra Azanha, que manda na sala, decidiu que não iria fazer concessões – mesmo sem estar no Príncipe Real, mesmo sem a opulência da restauração caça-expats da Avenida da Liberdade.
Entremos. O interior é tropical, cores fortes e alegres, com um toque de neo-realismo na parede, onde figura a representação escultural de uma favela, peça de Elisabete Marques herdada do antigo espaço que ali viveu, o Umami. Está tudo bem, bonito e confortável, mas o que impressiona mais é a comida e o cuidado nos detalhes.
Começando nos “petiscos e entradas”, o pastel de carne seca vem com Catupiry feito na casa. Catupiry é uma marca e não um tipo de queijo. Foi criada em 1911 por um italiano a residir em Minas Gerais, mas tornou-se sinónimo de um queijo cremoso feito à base de leite de vaca. À parte, vem ainda um picante extraordinário, com três “pimentas” (malaguetas) diferentes, entre elas duas autóctones brasileiras: a olho de bode e a cumari (também conhecida por cabeça de frade). Segue-se a casquinha de siri (caranguejo), tostada na perfeição, acompanhada de halófitas (plantas marinhas) que não são mero enfeite.
Podia-se ficar só nestes pratinhos, com preços entre os 7€ e os 12€, das ostras com vinagrete de citrinos ao caldinho de feijão e torresmos (da barriga de porco), passando pela linguiça flambeada em cachaça (pergunte pela colecção de cachaças artesanais).
O problema é que os principais também são recomendáveis – sobretudo os dois pesos pesados da Baía. Como recusar um bobó de camarão, ainda por cima com acaçá (papa de farinha de milho branco e de arroz, rara hoje em dia)? O mundo inteiro acha que sabe fazer bobós – mais ou menos aguados, com mais ou menos mandioca ou leite de coco. Mas um bobó de especialista, um bobó de chef com pés assentes na tradição, é outra coisa – e este é outra coisa. O mesmo dizer da moqueca. Há muitos brasileiros armados em tigres da moqueca, mas ou se esbardalha o peixe ou se falha na consistência do molho ou na dose de azeite de dendê. Aqui, tínhamos uma peça de corvina cozinhada na perfeição, os temperos no ponto, doçura e seda e aromáticas.
No final, nova prova de virtuosismo. Nem sempre as sobremesas brasileiras me encantam, porque demasiado intensas: se há povo que se bate com os tugas em matéria de açúcar é o brasileiro. Ora, no Quiçá! eleva-se a técnica de Fred Frank, que recorre ao arsenal mais sofisticado do seu reportório para nos dar um pudim de tapioca e “baba de moça” (creme de leite de coco, ovos e calda de açúcar) que entra directamente para a minha lista de sobremesas do ano, bem como uma das grandes mousses de chocolate (cacau brasileiro) de Lisboa, com bolacha de castanha de caju.
No final, diria que a factura começa nos 30€ e depois depende da quantidade de caipirinhas (recomendáveis) e de vinho (lista curta, mas bem seleccionada). O que é um preço justo, tendo em conta a qualidade da cozinha e do produto.
Lisboa já tem um bistrô brasileiro. E é do melhor que há.