Sempre que vou a um restaurante de Chakall, lembro-me do dia em que o vi na televisão a servir azeitonas oxidadas. Nesse programa, o “chef, jornalista, viajante, modelo, escritor” – para usar o auto-retrato da sua página na internet – andava pelo interior do país a fingir que viajava numa motoreta cool, quando resolveu parar para uma refeição ao ar livre, tudo natural e campestre. Como convidado tinha um autóctone, com quem simulou uma conversa casual e a quem decidiu fazer uma demonstração culinária. Não me lembro da receita, só me lembro que naquele cenário rural, numa região rodeada de oliveiras de azeitona galega, ele serviu azeitonas de lata, esse veneno salgado.
É uma imagem que tenho tentado ultrapassar. Mas não consigo.
Vejo Chakall como um produto embalado pronto a comer por mulheres de meia-idade seduzidas por olhos azuis e um certo ar perigoso de berbere montado num camelo. Como símbolo sexual é eficaz e não interessa que fale espanhol, que tenha vindo da Argentina, que na Argentina não se usem turbantes. Para as mulheres de meia-idade, Chakall será sempre essa figura exótica que um dia se enfiará com elas dentro de um saco-cama no Sahara. Para mim, contudo, será sempre o homem das azeitonas enlatadas.
Não gosto de pessoalizar os restaurantes, seja nos chefs, seja nos proprietários. Nem nunca esta coluna teve esse hábito. Mas no caso dos restaurantes de Chakall, não há como contornar a questão. Chakall impõe-se ele próprio com a sua figura, as suas histórias, os seus turbantes, os seus patrocínios e a sua promoção, relegando para segundo plano a comida, que é o que mais se valoriza aqui.
Detenhamo-nos neste Refeitório do Sr. Abel, aberto em finais de 2017. Situado nos antigos armazéns de vinho de Abel Pereira da Fonseca, em Marvila, é um espaço interessante, com uma grande portada envidraçada iluminando a sala e uma magnífica instalação no tecto simulando ramos de árvore em cartão. É uma pena no entanto que também pareça a secção de produtos italianos de um supermercado: seja qual for a direcção em que olhemos, encontramos uma marca de cerveja ou de mozarelas ou de molho de tomate, nenhuma que se destaque pela qualidade, reclamos de publicidade a fingir que são quadros ou prateleiras.
Na comida, repetem-se truques de cozinheiro comerciante. Vem uma bruschetta com alho e orégãos num pão industrial a fingir de rústico, duro e seco. O carpaccio de manzo aparece num prato cheio e alto, provocando o comentário – precipitado: “Bem servido”. Por baixo da fatia de carne de vaca, salpicada de lascas de um dito parmesão (mal curado e adocicado), estava uma montanha de salada sensaborona de pacote, boa para entreter bovinos. A outra entrada, por sua vez, usava da mesma estratégia de encher o prato de verdes, mas pelo menos chamava-se salada, salada de burrata, aparecendo na ementa com o selo “Sugestão de Mariana Abecasis – Nutricionista”. A acompanhar a folhagem, uma burrata pouco intensa, pinhões (pena não estarem torrados), lâminas de pera (pena faltar-lhes sumo e sabor) e outra vez aquele pão tipo saloio, cheio de melhorantes e fermentos que a doutora Abecasis não aprovaria.
Seguiram-se depois as pizzas, uma margherita clássica, a outra, a príncipe, de anchovas, cebola e molho de tomate. Segundo a imprensa especializada, elas foram criadas pelo siciliano Roberto Mezzapelle, campeão europeu de pizza acrobática. Infelizmente, no dia em que lá fomos não houve circo, pelo que tivemos de nos contentar com umas pizzas banais, uma delas com aquele problema de fazer uso de azeitonas pretas oxidadas, problema que, diga-se, aparece noutros restaurantes com pergaminhos.
Por fim, terminámos com um tiramisù del bonomo, publicitado na poliglota carta como sendo “uma receita especial, deliciosa e perfeita para partilhar”. Não iria tão longe, mas era um tiramisù satisfatório e fresco, com bastante creme de queijo mascarpone, sem ovos, falho em licor marsala, por cima polvilhado de chocolate triturado.
Faltou experimentar muita coisa, nomeadamente as pizzas especiais, como as de massa de carvão vegetal (?), de beterraba (?), de alfarroba ou de cânhamo (“sem THC”); e ainda as pizzas 100 por cento sem glúten, deus me livre e guarde.
Em síntese. Numa cidade cheia de pizzarias artesanais, não vejo uma razão para se ir a este Refeitório. A despesa é a mesma da que faríamos, por exemplo, no Casanova, sítio onde estaríamos a olhar o Tejo e a comer bastante melhor. Para além do mais, Chakall e os seus olhos azuis estavam ausentes, falhando também essa satisfação.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.