O Rei da China é o primeiro de dois conceitos que José Avillez abriu no Chiado em parceria com o chef argentino especializado em cozinha asiática Estanislao Carenzo. Funciona num formato mais rápido com lugares ao balcão e uma forte componente de take-away. É um bar de sopas com preços bastante acessíveis, semelhantes aos de uma carrinha de street food – o foco são as supersopas, feitas de raiz. Há três, a pho bo do loi, um caldo perfumado de vitela em duas cozeduras, mexilhão, massa de arroz e muitas ervas (8,50€), a dandan mian, um caldo de cogumelos com massa de trigo caseira, molho de amendoim, feijão verde e azeite de malagueta (8,50€) e o ramen de porco, com um supercaldo de galinha do campo, cachaço assado, massa de trigo caseira, grelos e ovo marinado (9€). Há ainda as sandes vietnamitas bánh mì, com alcatra panada, picles asiáticos, pepino, agrião e coentros, a fazer lembrar a nossa sandes de panado (6,50€) ou outra com beringela frita (5,80€), chamuças de caril de grão de bico (2€) bolinhos de bacalhau à tailandesa (1,80€) e um escabeche de algas e abóbora assada (2,50€). Tudo preparado para pegar e levar e fazer uma refeição completa sem grandes formalidades.
Crítica
Antes de rumar A mais um restaurante de Avillez, tarefa a que me dedico com regularidade, li isto num blogue: “O super fofo Rei da China fica no Chiado.” A autora da frase auto-intitulava-se “produtora de conteúdos lifestyle” e “apaixonada pelo Oriente, especialmente pela sua street food”.
Queria com isto dizer que o superfofo Rei da China fazia street food. Isto suscitou-me uma primeira reflexão, já aqui esboçada noutra crítica. Superfofo e street food é um paradoxo. Superfofo é o bebé da papa láctea, não o velho rezingão da rulote de sopa pho em Ho Chin Minh. Superfofo é um recém-nascido a cheirar a Mustela, não a loja de dandan mian noodles de Chengdu empestada de óleo de chile. Superfofo é a sopa de curgete e framboesa da health kitchen do Príncipe Real, não o ramen de porco de uma tasca de Tóquio.
Não batia a bota com a perdigota. Mas mesmo assim eu fui. Porque tinha de ir. Temos sempre de ir a um novo Avillez.
À chegada, primeira impressão: o Rei da China é fofo, de facto. A produtora de conteúdos de lifestyle tinha alguma razão. É fofo, primeiro, porque é pequeno: balcão de um lado, balcão do outro, seis lugares com vista para a microcozinha fofa e mais seis com vista para a rua, do outro lado o Bairro Avillez, mais abaixo viveu a Pitaria, também do chef, Rua José Avillez podia chamar-se um dia ou talvez não. Depois, é fofo porque está tudo bonitinho e limpinho e luminoso, belas fotos dos pratos na parede, ementa com pinta de designer afixada ao lado. Quanto à comida? Também é fofa.
O conceito passa por sentarmo-nos ao balcão, mas estava com amigos, pelo que sugeriram que comêssemos “lá dentro”. Lá dentro é um bar. Atrás do balcão, há uma passagem para uma sala, ambiente escuro de alcatifa e mesas baixas, uma boîte sem pipocas, antecâmara de um outro restaurante, no primeiro andar, intitulado Casa dos Prazeres, encerrado para obras “por causa de um problema nas estruturas”, disse o empregado.
Os pedidos para o Rei da China tiveram de ser feitos à entrada. Antes de nos sentarmos, cada um levou também de um frigorífico as bebidas, desde cerveja artesanal japonesa a Super Bock, tudo muito informal e prático.
Vamos aos pratos. As entradas que vieram para a mesa eram banais. Melhor o pastel de (pouco) bacalhau em forma de três bolinhas crocantes, com molho de malagueta doce a acompanhar, bom para bebés superfofos. Pior o escabeche de algas com abóbora assada (sem nada de escabeche, só um laivo de um vinagrete docinho) e as chamuças de grão, ambos uma fofura de que não guardarei memória.
Dos chamados Infiltrados, escolheu-se uma báhn mì em carcaça. Esta sim, muito boa. Panado de alcatra suculento, cabeça de xara, pepino, maionese, picles, coentros, amendoins. Grande sandes: crocância, gordura, sabor, acidez. Por seis euros temos uma refeição bem boa, e seria ainda melhor se a carcaça tivesse levado um aperto na torradeira.
Nisto chegaram as sopas, duas, “o forte” da casa, dizem os responsáveis. Na carta, aparecem três opções: pho bò, vietnamita; ramen de porco japonês; e dandan mian. Provaram-se estes dois últimos. O ramen de porco, feito de caldo de frango, limpo de gordura, estava elegante, mas faltava-lhe a complexidade e a pujança que associamos a um ramen suíno à séria, mesmo que não seja o espumoso tonkotsu. De resto, estava também à espera de carne de cachaço, tal como anunciado, com gordura entremeada, o que seria uma alternativa curiosa à habitual barriga de porco, mas apareceram fatias finas do que parecia ser lombinho.
Os noodles damdam mian foram ainda mais desanimadores. Não me atrevo a falar sobre a receita original: sendo um clássico da comida de rua na China, sobretudo na região de Sichuan, há tantas versões do prato quantos chineses no mundo. Eu associo-os sempre a massa salteada com óleo de chiles, pimenta de Sichuan, picles de couve e carne picada com ceboleto salteados no wok. Ou seja, sabores fortes. Tudo o que estes não eram. A versão do Rei da China veio com os mesmos noodles “caseiros” do ramen, demasiado moles, e um caldo insípido, nem doce, nem salgado, nem picante, nem ácido, nem amargo, nem nada. Era também suposto haver manteiga de amendoim, mas também passou ao lado, só mesmo os amendoins, que na verdade acabaram por dar textura e pouco mais.
Quem manda nisto? No caso do Rei da China, usou-se outra vez a fórmula do chef convidado (Cantina Peruana, Zaatar). Com uma nuance: estamos perante um chef de outro país, a fazer cozinha de outro país, num país terceiro. Estanislao Carenzo é argentino, o Rei da China assentou trono em Portugal, a cozinha é de inspiração asiática. Por cima disto tudo, está – claro – José Avillez.
Em síntese, voltamos ao mesmo. Nada de muito grave a apontar, nada de excitante a louvar. Avillez não faz maus restaurantes. Come-se razoavelmente no Rei da China e a conta é justa. Mas esperamos sempre de Avillez coisas especiais. E para fazer coisas especiais “o conceito” e “o espaço” não chegam. É preciso conhecimento, muita paixão, muita dedicação. Quando assim não é, as coisas não são credíveis, os clientes notam, os restaurantes fecham.
O rei, o rei Avillez, já está em topless. Não o queremos ver nu. Queremos que cozinhe.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.