Talvez o leitor se possa identificar com a minha obsessão pela culinária italiana (e italo-americana), que nos chegou através de pináculos da cultura pop como Os Sopranos e O Padrinho. Não raras vezes carregando símbolos outros – “Leave the gun, take the cannoli”, disse Clemenza a Rocco no filme de Francis Ford Coppola –, o cannoli desencadeava, além de fome, profundos debates filosóficos (prova derradeira de que vem tudo do mesmo sítio). Estas referências parecerão mais ou menos descontextualizadas, mas o que procuro explicar é, tão-só, que também nos sabores fundamos constantemente imaginários. Ignorando as demais opções, pedi um original e um de pistáchio (4€ cada). E uma sfogliatella (2,50€), sensibilizada que fiquei com aquele folhado.
Trincar um cannoli é uma coisa bela porque, por mais delicado em que transformem o seu aspecto, este rolo está nos antípodas da sofisticação. A massa resistente, dura, obriga a que empreguemos força, força que determina esta relação: há uma espécie de dança dialética com o creme a fugir por alguma brecha entretanto aberta, para logo o tentarmos apanhar com uma ponta quebrada que sabe a ancestralidade. É quase natalícia, naquela fritura condimentada e escancarada, e que não queremos mais subtil. E depois o creme, denso, quase um queijo amanteigado. Ao de pistáchio, acresce uma generosa parte de creme do mesmo, gorduroso e fresco, e tudo muito doce, não desejei que fosse diferente.
Infelizmente, a sfogliatella não foi assim feliz. Estava velha, dura e pastilhenta. Concluí, pelas notas aromáticas ainda perceptíveis, que fresca será maravilhosa, mas achei um escândalo terem vendido um produto passado.
Ainda assim, reterei a alegria da resolução de tão longa relação platónica, e a apropriação de mais um gesto ensinado por mestres do ecrã, que num passe da mágica da humanidade (e alguma globalização) nos chega à boca.
*Os críticos da Time Out visitam os restaurantes de forma anónima e pagam pelas refeições.