Há boas razões para as pessoas rumarem às praias como formigas ao pote na ânsia de comer peixe. Os restaurantes de praia têm uma boa probabilidade de conseguirem peixe mais fresco e mais barato. Infelizmente, isso só acontece nalguns e, frequentemente, de forma clandestina: os pescadores, em vez de irem à lota vender robalo por tuta e meia (ou truta e meia), vão directamente a quem distribui ao consumidor final e ainda bem – poupa-se tempo, poupam-se intermediários, fica a ganhar quem arrisca mais.
Não sei se é isso que acontece no Retiro do Pescador, mas gosto de imaginar que sim, pelo menos em certas alturas do ano. Que não esta.
A visita ao restaurante da Fonte da Telha, praia que apanha Almada e Sesimbra, acontece em meados de Agosto, bem no pico de veraneio. Às 14.45 o sítio está cheio e eu imagino que já tivessem sido servidas umas centenas de pessoas – e de peixes. O empregado a borda-mecomoabordam os empregados que já serviram umas centenas de pessoas. Antes de estar sentado, já me está a perguntar que peixe quero e a pôr à frente uns pastéis de bacalhau renegados e tortos. Pergunto-lhe se posso ver o peixe e ele assente. Não há vitrina, mas há uma bandeja que vai à mesa. Entre os espécimes estão bichos com diversos níveis de frescura, alguns já de olho baço e côncavo. Pergunto se a dourada, pequena, é de mar. “É, sim”. De certeza? “É, sim”. Não era, não.
Enquanto espero, distraio-me com o sítio. O lugar da Fonte da Telha é um horror urbanístico a lembrar a Albânia. Há vários restaurantes tão em cima do mar que quase podemos apanhar carreirinhas sentados na esplanada. A estrada, do outro lado, desemboca num largo onde os autocarros têm de fazer sempre uma manobra que põe o trânsito histérico. Em redor, estacionamento sem lei, lojas de baldinhos e chapéus de sol, transeuntes esgueirando-se no meio do caos em direcção a dois metros quadrados de areia.
Ao meu metro quadrado chegam agora umas amêijoas à Bulhão Pato. São gordas e grandes como raramente se encontram em Portugal (voa quase tudo para Espanha). O empregado garante que são de Alcácer do Sal, ou seja, do Sado, mas a indicação sai-lhe outra vez sem convicção. Em todo o caso, o molho está saboroso de coentros frescos e alhos esmagados e sabemos que isso vale 70 por cento da experiência.
Ainda não acabei os bivalves, ainda não aterrou a salada de choco mas o peixe já está na mesa. Vem escalado em dois filetes polvilhados de salsa picada com duas batatas cozidas ao lado.
Não sou dos que se indignam com o peixe escalado e seu arrazoado: perde- -se humidade, perde-se sabor, perde-se a dignidade do animal e blá-blá-blá de gourmet. Nem sempre. Depende. Há coisas boas no peixe escalado. O peixe escalado significa que terei quatro superfícies douradas (e não duas torradas) e o sal mais bem distribuído. Se quem estiver na grelha souber do ofício, essa ideia de que o peixe fica seco por dentro é uma treta. Fica seco se deixarem secar. E aqui não deixam.
Apesar de a dourada ser de aquacultura é uma boa dourada e está suculenta e com a pele crocante sem ponta de torrado. Pena a salada de vegetais não aparecer.
O que aparece, ainda que fora de tempo, é a salada de choco. Não há um pedido de desculpas, uma justificação – nem para o timing nem para estar ressequida. A cebola, picada fininha, é velha. O choco não é do Pacífico mas está duro como cartão.
Nisto, brilha o sol e brilha o mar e podemos estender a mão e tocar na areia. A terminar, novo bate-boca com o empregado, agora sobre as sobremesas. “Melão”. E mais? “Temos o doce da casa”. É caseiro? “É, sim”. Volta aquele ar aéreo e encenado, o olhar fugidio sobre as ondas. Sinto que é preciso esmiuçar o tema, há mil e uma formas de uma coisa ser caseira sem o ser. Esta é uma delas. “Bem, leva uma camada de pudim”. Ah, sim. Que pudim? “Como aquele do Boca Doce”. Mas esse não é caseiro. “Fazemo-lo cá”. Já faltava. “Ele é, isso sim, instantâneo.” Grande profissional da malandrice. “Mas a mousse não é”. E não era.
Este Retiro do Pescador é assim. Dá ideia que sabe fazer, mas depois é inconstante. Os empregados são muitos, vi uns muito diligentes e simpáticos. O peixe há-de ser muito e há-de ter do bom e do mau. É preciso estar atento. E é preciso ir lá quando os pescadores lá vão. Fora de Agosto.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.