Houve um tempo em que as vieiras eram um símbolo de sofisticação, mas depois afundaram-se nas mesmas águas onde imergiu o béchamel. É uma pena, como pude comprovar no espaço de poucos dias, em duas refeições bem diferentes. A primeira aconteceu no Batareo, casa popular de peixe grelhado em Setúbal, onde as comi em concha, saídas vivas da vitrina do anfitrião João Valente, directamente para o carvão. A segunda refeição de vieiras aconteceu esta semana, no Rosamar, um dos mais recentes restaurantes do grupo EPL Nova.
A espetada de vieiras do Rosamar não foi melhor do que as vieiras grelhadas do Batareo, mas fizeram a combinação do mês. Acompanhadas de um molho de ananás glaceado, as vieiras caramelizadas elevaram-se, passando o dueto a figurar na lista de ligações improváveis, daquelas que nos fazem pensar na capacidade infinita de a comida nos emocionar e surpreender.
Foi o prato da noite, num jantar sem outros sobressaltos, com lotação esgotada e muitas mesas a rodar.
De notar que o Rosamar não é um restaurantezinho, mas uma sala com mais de 50 lugares e um pátio e um bar onde cabem umas quantas dezenas de clientes adicionais. Tendo em conta a dimensão e a complexidade do menu, tudo fluiu bem. Palmas à cozinha, que é aberta e virada para a sala, e ao serviço, que soube servir tudo com ritmo e simpatia, incluindo um branco do Dão, de Álvaro Castro, pouco óbvio, em copos apropriados e à temperatura correcta.
A clientela, em pleno mês de Agosto, em pleno Príncipe Real, era composta em mais de 90 por cento de estrangeiros, mas não dos turistas de chinelo.
Não admira que, da recepção aos empregados de mesa, o staff use o inglês como língua corrente, mesmo tendo o cliente um biótipo ibérico, mesmo tendo já havido cumprimentos em português. É um hábito que se tem instalado, vulgarizado, como o francês se tornou corrente nos riades de Marraquexe ou o inglês passou a ser regra nos bares de Santorini. Não será fácil para os empregados comunicar neste ambiente, mas ainda assim era bom que houvesse pelo menos um esforço, o mínimo de pudor.
Sucede que o Rosamar não é para tugas, como já quase nada é para tugas no Príncipe Real e arredores. Os donos são belgas, os preços são para a classe média alta francesa ou italiana ou holandesa, a comida também é feita para eles: o menu pesca em águas nacionais (quase só peixes e marisco) mas transforma a matéria-prima em receituário do mundo, com paragens em portos conhecidos, como Itália, México e Médio Oriente.
O êxito da fórmula, evidente noutros restaurantes do grupo EPL Nova, como o Leonette (italiano, mesmo ao lado, com fila de espera na rua), devia pôr-nos a pensar. Porque razão a maioria dos turistas que visitam Lisboa se estão borrifando para a cozinha portuguesa? É um problema dos restaurantes de cozinha portuguesa? É um problema da cozinha portuguesa? Porque é que em Madrid, em Espanha – que será o país com uma culinária mais parecida com a portuguesa – os turistas fazem fila para ir a restaurantes de comida espanhola e, em Lisboa, salvo honrosas excepções, fazem fila para pizzas e massas e pescado transformado em “grilled octopus tostada” (boa, por sinal) ou “clams tagliatelle”?
Enfim, passe o desabafo, o Rosamar só tem a ver com isto porque é mais um destes campeões da restauração para turistas classe B e A. Para um tuga desatento, é fácil irritar-se com o menu em inglês e com o leite de coco nas ostras. Mas a verdade é que restaurantes como o Rosamar ou o Javá ou o Farès – para citar só casas do grupo EPL Nova – fazem por merecer o sucesso. Olhando para o pacote todo – espaço, ambiente, cozinha e serviço – eles estão acima da média: têm uma operação bem montada, têm produto e sabem trabalhá-lo. Parece fácil, parece simples, não é – como, aliás, se prova pela falta de profissionalismo e consistência que ainda grassam na cidade.
Agora, falta o resto. E, neste Rosamar, em particular, falta alma. Está lá o conceito e o conceito parece óptimo. A ideia é um restaurante com produtos do mar, já se vê. Só que o mar desaparece se lhe pusermos quatro bolinhas de gel, emulsão de erva príncipe, aioli, pozinho disto, compota daquilo, uma pitada de açúcar, outra de uma aromática exótica. Olhamos e é bonito, pomos na boca e geralmente é bom. Mas frequentemente também é confuso ao ponto de esquecermos que estamos no restaurante marinho.
No final, são 50€ e faltou peixe, faltou mar, e, talvez, um pouco de hidratos e uma sobremesa à altura dos 7,5€ cobrados pela cinnamon apple. É muito dinheiro? É um roubo? Se calhar, não é. Se calhar, a vida para os portugueses simplesmente não está para gastar 19€ numas belíssimas vieiras.