Já tinha reparado que havia um novo sítio da moda na Rua do Benformoso. Sempre que lá passava, estava cheio – e isso costuma ser bom sinal. Depois, um dia, o Sam confirmou tudo. “É o restaurante bengali do momento.”
Conheci o Sam no bar da Constança Cordeiro, no Príncipe Real, o Uni. Sam, natural do Bangladesh, era o bartender de serviço. Certa noite, dei por mim a limpar a garganta e a alma com os seus cocktails.
Quem conhece o sítio, um cubículo de nove lugares, sabe que é difícil manter o silêncio entre duas pessoas num lugar tão apertado. Daí até ao Royal Spicy foram dois copos.
Ficámos de ir ao novo restaurante do Benformoso os dois, algures em 2025, mas entretanto as coisas precipitaram-se. A Rua do Benformoso foi alvo de uma rusga – ou, melhor, os imigrantes que a habitam foram alvo de uma rusga – e eu antecipei-me.
Frequento a Rua do Benformoso há mais de dez anos, como sabem os leitores mais atentos desta rubrica. Sou um fã dos seus aromas, das suas pessoas, das suas comidas. Mas nunca fui fã do fraco policiamento, da escassa fiscalização do comércio e dos apartamentos arrendados sem escrúpulos (por senhorios portugueses), do consumo e do tráfico de droga.
O consumo e o tráfico de droga existem ali antes da rua ser celebrizada como um bastião dos indostânicos. O Intendente, que fica no topo da rua, é um problema com décadas. E há décadas que o problema se estendeu ao Benformoso.
A polícia, que tem esquadra ali ao lado, tem fingido que não vê. Contam-se pelos dedos de uma mão o número de polícias que vi no Benformoso, ao longo dos anos. Não há policiamento de proximidade, porque a PSP não quer proximidade com estas pessoas. É mais simples fazer rusgas de ano a ano. E dá mais impacto para a TV. Mas não funciona.
E quem são as maiores vítimas? Os imigrantes que lá vivem. Os bengalis, sobretudo, quase todos pessoas que trabalham incansavelmente a entregar-nos comida em casa.
Peço desculpa pelo desvio à culinária, mas o Benformoso é uma oportunidade para a cidade, um lugar de cor e vida e diversidade. Não é o buraco medonho que as redes sociais e pessoas xenófobas e racistas têm pintado.
Prova disso é este Royal Spicy.
Tinha razão o Sam. Fui lá há dias e comi maravilhosamente. Estava com o nariz entupido, e o Royal salvou-me, para mais.
Comecei com um tarka dahl poderosíssimo, com as malaguetas verdes quase inteiras misturando-se com as lentilhas. Fosse só isto e já saía bem.
Mas depois veio o caril de vaca, grafado como "beef curry". É talvez o prato mais prestigiado da cozinha bengali do Royal Spicy e percebe-se porquê. O molho é escuro como o fundo de um poço e nele podemos reconhecer um tacho borbulhante de especiarias, malaguetas e quilos de cebola cozinhadas até ficarem num creme de veludo.
A carne foi sendo amolecida pela acção do calor e do turbilhão enzimático produzido pelos pós mágicos da despensa bengali, mas tem a emoção de não ser um lombinho homogéneo, aparecendo-nos também em bombinhas de colágeno tendinoso, bem saborosas.
A acompanhar pode vir um prato – um pratão, na verdade – de arroz basmati longo e uma tigela só de caldo de legumes e ghee, para regar o arroz e o colar. Os bengalis usam-no para facilitar comer o arroz e o caril com os dedos.
Outra opção são os pães achatados, entre eles a paratha ou parota, assada na chapa com manteiga. Para empurrar, sugere-se o chaa, especiarias diversas com leite, boas para acalmar as papilas excitadas pela capsaicina.
No final, há ainda as sobremesas clássicas do Indostão, quase todas bolinhos humedecidos com xarope de açúcar, mas eu fui por uma espécie de requeijão caseiro, à base de iogurte e natas, sugerido pelo empregado, e fiquei bem.
Por tudo isto, pagaram-se 12 euros. Dificilmente encontro melhor almoço em toda a Baixa, por este preço.
Façam-se ao Benformoso e comam. O resto é fumaça.