No Ruvida — "áspero" na tradução para português — o dia começa com um pedaço de massa de tamanho considerável e tudo é feito à mão. Valentina, uma das figuras do negócio define o conceito como uma cozinha atípica que procura trazer receitas ultra tradicionais só possíveis de encontrar em determinadas zonas de Itália, numa viagem que quer, aos poucos, dar a provar todo o país. A carta abriu a jogar em casa, com apostas na gastronomia do Norte, mas a sazonalidade é um factor que o Ruvida vai levar a sério.
Por Tiago Neto
Crítica:
Apareceu no início do ano com estrondo e é mais uma dessas histórias migratórias de turista rico, vim a Lisboa de férias e fiquei. A mulher do rolo da massa, Valentina, aprendeu o ofício da pasta em Bolonha, cidade onde conheceu o homem do tacho, Michel, seu sócio e companheiro, italiano de Veneza. Os dois montaram banca em Alcântara e decidiram fazer tudo no registo artesanal de cozinha aberta, tendência aqui e no mundo. As massas são estendidas e cortadas em frente aos clientes, quem não vê in loco pode espreitar nas redes sociais, muito activas e sofisticadas. De uma coisa não há dúvida: este Ruvida tem biografia e tem marketing. Mas terá boa comida?
Para dirimir a questão recorro a um peso pesado da crítica gastronómica. O amigo que me acompanha ao almoço já escreveu nesta revista, neste espaço. Assinava Manuel Ferreira Gavetão e uma das suas crónicas sobre restaurantes ficou célebre pelo arrazoado de palavrões. Não tinha a ver com falta de educação, tinha a ver com felicidade. O texto era o relato de um momento de grande felicidade à mesa, a sua posição favorita.
É assim que estamos agora, sentados na esplanada do Ruvida. A expectativa é alta, o asneirómetro está no on. Temos vista para a Praça da Armada, atrás uma casinha pitoresca de estendal, a padaria Gleba à direita (e em todo o lado, diria, Ruvida incluído, casa de Gavetão idem. “Sou o número 13 da lista deles”, diz, a propósito. Qual lista? “Das encomendas. Tenho um barbela reservado para mim todas as semanas”, conclui, enquanto encharca um pedaço de pão em azeite ribatejano.)
Ultrapassado o aquecimento, dá-se início ao espectáculo. Mal o tartara de vitello alla piemontese aterra na mesa, acaba a conversa. À terceira garfada, Gavetão entra num transe só dele, vai gemendo hmmms e vai rezando como uma velha na missa, a cabeça metida no prato, os talheres esquadrinhando a carne cruda. De repente, solta o primeiro impropério. “Foda-se.” Outra garfada, levanta a cabeça. “Foda-se, foda-se, foda-se.” A síndrome de Tourette ataca. Poisa os talheres, reclina os seus 130 quilos de apetite. “Este tártaro está do caralho. E olha que de tártaros sei eu.” Por fim, apanha as lascas de parmesão sobejantes com os dedos. “Tens de dar cinco estrelas a isto. Foda-se.”
A sentença aparece aos 10 minutos de jogo, talvez cedo, penso eu, “isto está muita bom”, insiste ele, e ainda não meteu a colher no meu creme de favas. A toada vernacular prossegue com os raviólis de camarão selvagem de Moçambique e pistáchio, prato do dia fora da carta, e depois com o tagliatelle com tomates e alcaparras, este uma de duas possibilidades do menu de almoço, bom negócio por 16 euros (entrada + principal + bebida + sobremesa).
Era suposto encerrarmos por aqui os principais, mas Gavetão gosta sempre de duplicar a dose. Quando a simpática empregada se prepara para tomar conta do pedido dos doces, ele reclama outra porção de salgados. “Antes das sobremesas, pode trazer aqueles tortelloni que sugeriu há pouco.” Os tortelloni burro e oro justificam a fama, uma maravilha de sêmola dura recheada de ricota, parmesão e noz moscada, almofadinhas ásperas (ruvida significa “áspera”) boas para segurar o molho aveludado de tomate e manteiga.
Chegamos às sobremesas. Hoje em dia, já quase ninguém come uma sobremesa sozinho: sobremesa é para partilhar. Ora, não com Gavetão. Com Gavetão o ratio muda para uma sobremesa por 0,5 pessoas. Vem um gelado de pêssego com um pedaço do dito no interior, vem uma panacota com pedaços de chocolate, vem um creme de mascarpone e uma tenerina al cioccolato, espécie de fondant polvilhado de pistáchio. Fresquíssimo e equilibrado o gelado de pêssego, bom o resto, com uma ou outra falha: a panacota com a gelatina mal dissolvida e abaixo da bitola da melhor concorrência (Casanova), o mascarpone caseiro mas excessivamente doce (“não, para mim”, diz Gavetão), o fondant bom, ligeiramente borrachoso.
Em síntese. O Ruvida tem personalidade, é honesto, criativo e muito bom. Espaço sem opulência mas confortável e bonito. Serviço educado, conhecedor, humano, sorridente.
No final, falta atribuir as estrelas. Está ali no limbo entre as 4 e as 5. Tento abstrair-me da influência de Gavetão, mas é difícil fazer uma avaliação independente na presença do seu entusiasmo. Vou para casa, faço a digestão, medito, decido.
Não sei se o Ruvida será sempre um restaurante excepcional, mas esta refeição foi cinco estrelas. Oxalá continuem a merecer o Gavetão. Foda-se.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.