A maioria dos restaurantes falha. Mesmo os bons restaurantes falham. Tal como os humanos. De tal forma que é raro o sítio em que podemos garantir que teremos sempre uma boa refeição.
Ora, o Sal e Brasas é uma dessas excepções em que tudo funciona na perfeição, como uma máquina de comida boa. Não uma máquina despersonalizada, há lá muita gente e boa. Uma máquina no sentido de estar tudo planeado detalhadamente para correr bem – e correr tudo mesmo bem.
Vejamos o caso do cozido à portuguesa. É servido às quartas-feiras, em modo buffet. Não sou fã de buffet. Mas se há prato em que faz sentido haver buffet é o cozido à portuguesa. Porquê? Porque é preciso manter a comida quente, sem que isso signifique deixar tudo a esbardalhar-se num tacho em água fervente.
De resto, o cozido está cheio de outros detalhes. Um dos detalhes mais complexos tem a ver com o ponto de cozedura das coisas. São, na verdade, muitas coisas e muitos pontos de cozedura: aba bovina, entrecosto de porco, chispes, orelha fumada, feijão, batata, couves, arroz, chouriço, farinheira, morcela de arroz, chouriço de sangue.
No Sal e Brasas as pessoas sabem que cada coisa coze de maneira diferente – e, mais importante, executam bem o que já sabem.
Pelas 13.15 está tudo perfeito, tudo a postos para a enchente. Ao fundo da sala – luminosa com vidros a toda a largura – alinha-se uma dezena de estufas de aço inox, cada uma com seu ingrediente cozido. Por 15,95€ podemos passar ali umas horas, saltitando de bandeja em bandeja: mais um bocadinho de morcela, outro de entrecosto, agora couves, depois feijão. É bonito de ver, tem tudo bom aspecto — incluindo as couves, sempre difíceis de manter naquele ponto em que deixaram de ser um saco de plástico e ainda não são só fiapos de enxofre; incluindo as batatas, quase sempre esboroadas, aqui íntegras, direitas, densas; e incluindo a farinheira – oh, deus, a farinheira –, na maioria dos sítios servida já fria como calhaus das Penhas Douradas, aqui rodelas magníficas e lustrosas e quentinhas.
Olhando à volta, vemos sentadas muitas camisas brancas, fardas de executivos, malta dos escritórios para quem o almoço pode bem ser o único convívio saboroso do dia. São as mesmas camisas brancas quase todos os dias, quase todos os anos, há muitos anos.
O Sal e Brasas abriu em 2017, ali onde Campolide se encontra com Sete Rios, perto das Twin Towers (cof, cof ), mas a história começou a ser construída pelo casal Zé Guerra e Maria Eduarda na sua Coruche natal, em 2003. Daí rumaram para a zona da Tapada das Necessidades, dois anos volvidos, e foi já na morada lisboeta que construíram reputação entre os amantes de cozinha tradicional e das carnes maturadas, então ainda pouco conhecidas.
As carnes maturadas ainda são, aliás, o emblema da casa, pena que já não se sirvam os novilhos da charneca, petisco de Coruche, e se aposte agora sobretudo na raça black angus – sempre boa, raramente extraordinária – e em cortes de várias proveniências longínquas, de Espanha ao Uruguai, passando pela Austrália.
Um dos pratos diários que mais sai é o bife à cortador para dois, peça do acém servida fatiada com flor de sal e batatas fritas às rodelas absolutamente perfeitas, finas bolachas loiras, e também um esparregado caseiro no estilo mousse de farinha mas em bom, com os grelos e o alho presentes.
As minhas melhores refeições foram contudo sempre dos pratos do dia. Notáveis os croquetes de picanha com salada russa. O polvo à lagareiro, uma das raras propostas marítimas, estava tenro por dentro e grelhado por fora, servido com grelos. Já para não falar da alheira caseira, oriunda de Coruche (palavra de empregado, viva a alheira ribatejana!), ou do presunto pata negra, vindo de Badajoz, ambos sempre disponíveis. Mas voltemos ao cozido. A grande prova do cuidado que o Sal e Brasas põe nas coisas ainda está para vir. Maria Eduarda e suas acólitas cozinheiras estão em redor dos fogões tomando conta de quase tudo. Às tantas, aparece-nos à mesa com um pratinho cheio de rodelas de chouriço de sangue. “Este não pode estar ali no buffet, tem de ser servido no momento”, justifica, correndo as mesas, a picar o chouriço para o prato de cada cliente – e são muitos, que a casa está sempre cheia e é grande.
O chouriço de sangue é óptimo, imprescindível para cortar a gordura com o seu vinagre agreste. E só podia ser servido assim. E ser servido assim é a prova de que o Sal e Brasas é uma grande casa. Uma máquina. Com alma.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.