Já toda a gente entrou num restaurante quando os cozinheiros ainda estão debruçados sobre o balcão sem nada para fazer, e os empregados estão a um canto da sala com as mãos atrás das costas sem nada para fazer, aguardando os primeiros clientes com um sorriso na cara.
Pode parecer estranho, por vezes sentimo-nos oprimidos com tanta atenção, mas no final da refeição, normalmente, percebemos que foi bom termos ido cedo. Em qualquer restaurante do mundo, seja uma tasca ou um Michelin, o melhor horário é sempre o de abertura, nesse momento em que a sala está vazia e a energia da equipa está no máximo e os protocolos e as fichas técnicas podem ser cumpridos escrupulosamente. Ou seja, de acordo com a experiência de quem já fez todos os turnos e esmiúça estas coisas, se querem ser bem servidos é chegarem até trinta minutos depois de as portas abrirem: ao almoço pelas 12.30, ao jantar pelas 19.30.
Não é cool, nunca é cool chegar cedo a nada neste país: vale para a entrevista de emprego e mais ainda para um restaurante vazio ou semivazio. Mas em 80 por cento dos sítios só essa antecipação garante que a sopa de juliana não se transformou numa argamassa de amido ou que o jus de carne não se reduziu a um creme salgado ou que não haja acidentes do tipo de acidentes que acontecem no fim do serviço, quando a cozinha perde o pé e a única forma de refazer a entrecôte que se estatelou no chão é voltar a enfiá-la no Josper e depois no nosso prato.
Serve o intróito para dizer que encontrei o SáLa num desses momentos de grande disponibilidade para servir, a sala só com uma mesa ocupada ao nosso lado. Disseram-nos que tem sido assim ao almoço, mesmo depois do horário de abertura, mas que ao jantar há mais movimento, sendo aconselhável reservar para sexta-feira e sábado à noite. É preciso também lembrar que estamos em época baixa, dentro do que pode ser a época baixa numa cidade que se tornou capital europeia do turista – e se por ali há turistas!
O SáLa fica na Rua dos Bacalhoeiros, ao Campo das Cebolas, zona a que os urbanistas chamam de nova centralidade dentro da centralidade. Há muito tempo que desapareceram os bacalhoeiros e o que ainda prolifera é o restaurante de empregado a capturar passantes de menu em punho. Parece contudo que, há uns meses, alguém fez soar a campainha da requalificação junto de certos operadores e de repente, paredes meias com o very tipical e o minimercado indiano, brotaram estrelas do gourmet lisboeta, com José Avillez à cabeça, mas também o Basílio, craque do Instagram, ou o L’Éclair, loja dos melhores e mais caros éclaires que se encontram a sul de Paris e quem sabe a norte.
O SáLa aparece nessa vizinhança. À frente do restaurante está João Sá. Apenas com 32 anos, já anda nisto há um bocado. Foi um dos vários – e dos últimos – chefs a passar pelo Assinatura, um restaurante onde a simpática notoriedade na imprensa foi sempre inversamente proporcional à clientela que lá ia e pagava a refeição. Esperemos que não tenha a mesma sorte este SáLa, que há vários meses andava a ser preparado, com alguns percalços pelo meio e mudança de habitat.
O posicionamento é o de um fine dining entre o Michelin e a nova bistronomia à portuguesa, de que o Prado é um justo bastião. Os preços estão no meio, à volta de 50 euros, um degrau acima do Prado, dois abaixo do Michelin. Idem para os produtos, a intercalar semiluxo (como nos extraordinários carabineiros) com escolhas sustentáveis e baratas (vide a cavala curada, também bem boa). A mesma ideia nos empratamentos, entre o ourives e o oleiro, com geometrias de alta cozinha (por vezes infantis, como na rodinha de costeletas de cordeiro de leite) e desenhos menos pretensiosos (como no do prato de carabineiros).
No serviço calhou-nos uma empregada tranquila e segura, com um sorriso sereno, mesmo quando sugerimos uma temperatura mais baixa para o vinho de verdelho da Quinta do Sobreiró de Cima, que aguentou toda a refeição, e ela acorreu a refrescá-lo sem contrapor argumentos de algibeira. Pedimos oito pratos, a contar com couvert de pão e sobremesa. Como vem acontecendo na tal bistromania que começa a alastrar, não há aqui divisão entre entradas e pratos principais, mas João Sá foi engenhoso ao listar os pratos de acordo com a sua intensidade de sabor, do mais leve para o mais forte — organização muito apropriada. Total de 14 pratos na carta, mais cinco sobremesas, preços a começar nos 3,5€ para o pão e a subir até aos 16€ para o carabineiro e para a batata com trufa preta. É aconselhável repartir três a quatro pratos por pessoa.
Vamos às notas de prova. O pão é feito na casa, com massa mãe, muito saboroso embora com defeitos nos acabamentos, enfarinhado na base. Boa a manteiga do Pico, não tão entusiasmante a pasta de couve. Directamente da terra, o prato de cogumelos com raiz de aipo laminada formando cones, o fungo em vários acabamentos esgueirando-se nesses buracos. Igualmente terrosa a batata em forma de croissant, com cogumelos e trufa preta, esta não particularmente odorífera, mas o conjunto cheio de notas confortáveis e campestres a subsolo. A cavala curada impecável, límpida, fresca, bem estimulada pelo molho de mostarda e pelos picles de cenoura, pena repetir o enfeite cliché das folhas de capuchinha, já presente nas batatas. A couve com trigo sarraceno é um curioso intercâmbio entre a Dinamarca (vegetais e trigo sarraceno), o Extremo Oriente (kimchi de couve chinesa), e Portugal (massa de pimentão de couve coração). Notáveis de frescura os carabineiros, e inteligente a maneira como João Sá aproveita o cefalotórax para o molho sem descartar a cabeça do camarão na composição do prato; acompanha bem o brûlée de presunto e castanha desidratada. A terminar os salgados, costeletas de cordeiro, picles de romã e puré de topinambur, com a casca do tubérculo frita a ser a melhor surpresa.
A sobremesa escolhida foi a de frutos secos, com toffee e praliné salgado, bem boa.
Em síntese. O SáLa é um sítio bonito, com comida boa, onde entram influências contemporâneas várias, nomeadamente de cariz nórdico, seja na comida seja na decoração marcada por mobiliário claro e design límpido. O facto de estar na divisão dos quase-Michelin pode não ser um target atractivo, mas não há muitas cozinhas tão sérias como esta na cidade. A refeição que lá fiz mereceu a atenção dedicada dos empregados e todo o cuidado de quem estava na cozinha. É ir experimentar. De preferência cedo.
A crítica de Alfredo Lacerda foi publicada a 11/03/2019, antes da estrela Michelin, que só chegou em 2024.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.