Crítica
O Sé da Guarda é um desses restaurantes que eram tascas e passaram a snack bar às mãos dos agentes comerciais das marcas de bebidas. Parece uma arrecadação para onde atiraram todo o merchandising da Super Bock dos últimos 20 anos, de posters a relógios luminosos. Acresce que, nas paredes, o que não foi poluído com brindes já estava poluído com azulejaria diversa, ora de temática religiosa e campestre ora de cariz contemporâneo (painéis que parecem sobras do WC do recuado de uma moradia).
Uma desgraça. Sem nenhuma importância.
Só um profissional da contemplação e da escrita é que se lembra de registar isto. Perante o melhor peixe frito da Grande Lisboa, acompanhado pelo melhor arroz de grelos da Grande Lisboa, ninguém olha para a decoração. Sei de pessoas que saem de lá a dizer que estiveram no paraíso. Ficam cegas, ficam saciadas, ficam felizes.
A culpa é da comida, claro. No meu caso, em particular, a culpa foi do cachucho. Foi pelo cachucho que entrei no altar da Sé.
O cachucho é um peixe injustamente desprezado pela restauração e pela cozinha doméstica. Na praça, custa meio dúzia de euros por quilo, e é certo que não andou a comer farinhas de aquacultura. No Sé da Guarda fritam-nos com um polme fino e sequíssimo, crocantes por fora, húmidos por dentro, sem óleo queimado (raridade), os lombos inteiros e brancos.
Ando quilómetros por causa do cachucho, mas vou lá também por outras coisas.
Pela fritadeira passam ainda petingas, carapauzinhos, pescadinhas de rabo na boca, raia, choco, tudo fresco e passível de escrutinação em vitrina. Nos dias maus, acompanha-se com arroz de tomate ou feijão frade com cebola e salsa, nos dias bons trazem arroz de feijão ou arroz de grelos feitos no momento, malandrinho, o carolino no ponto.
O truque é dar uma olhada na página do Facebook, actualizada pelas 10h30 com os pratos do dia, e ir muito cedo (abre às seis da manhã, não exagere) que a casa enche e nem o mercado de Algés, mesmo ao lado, desvia a clientela fiel, tratada pelo nome ou por “amor”, “fofinha” e “minha querida”.
No dia em que escrevi isto a lista tinha duas dezenas de entradas, entre elas pezinhos de leitão de coentrada com batata frita (palitos dourados e hirtos), iscas, frango de cabidela, cabeça de garoupa – fora os peixes para grelhar, de salmonetes a chocos pequenos, passando por carapaus, ovas e peixe espada preto.
Depois das cinco da tarde, abre o período dos petiscos e entram em cena as caracoletas assadas, os caracóis, bacalhau assado, morcela assada, pica-pau, camarões ao alhinho, amêijoas e cadelinhas.
A responsável máxima por tudo isto é a Dona Rosa, proprietária e cozinheira, sempre com um olho no tacho e outro no serviço. Muitos clientes acorrem à porta da cozinhaparaacumprimentar sendo logo escorraçados pela filha, empregada na sala, uma galhofeira de voz quase tão penetrante quanto a sua simpatia.
É raro escapar-lhe um pedido ou uma cortesia, as azeitonas com orégãos aparecem na mesa quando têm de aparecer, desaparecem quando têm de desaparecer, a loiça vai e vem com uma fluidez impressionante, e isto num sítio aparentemente caótico e sem logística nem protocolo, feito de muita experiência e amor.
No balcão está o pai, Zé Maria Esteves, figura que completa o núcleo familiar, todo ele migrado de Valença do Minho. Do Minho?? E a Sé? E a Guarda? “Os antigos donos é que eram da Guarda. Nós viemos para cá há uns 35 anos mas deixámos ficar o nome”, explica a filha.
Isto é bonito.
E é barato.
E é bom.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.