Apicius escreveu longamente sobre a conservação de peixe com ácidos (não desses). A técnica haveria de refinar-se no escabeche andaluz, que depois viajou para as Américas. Segundo alguns historiadores, terão sido os colonos espanhóis a espalhar a receita, e as laranjas amargas de Sevilha e as limas dariam origem às marinadas do Peru, país que hoje é mais conhecido pelo ceviche do que pelo Machu Picchu.
Tudo isto pode ser só eurocentrismo primário, mas a verdade é que os tugas aderiram ao ceviche nos últimos anos como se o comessem desde antes de Cristo. A moda do sushi teve resistências, a carne maturada teve resistências, mas sobre o ceviche nunca se ouviu um reparo, um enjoo, um desgosto.
Daí que a sala semivazia deste Segundo Muelle me tenha deixado depéatrás. Partedajustificação pode estar nisto. Apesar da luz a rodos e da decoração moderna de adornos marítimos (forte tendência na restauração lisboeta em 2016), pressente-se aquilo que o Segundo Muelle é: uma marca internacional franchisada. Talvez porque tudo esteja no sítio, demasiado arrumadinho, ou então por causa do menu extremamente explicativo e profissional, fica a ideia de uma cadeia cara e sofisticada, mas de uma cadeia. O que, não importando para as papilas, nos faz sentir num sítio banal e faz-nos sentir mais pobres.
Ainda no terreno das apresentações, não ajudou que o empregado tenha sugerido um cocktail de sangria para acompanhar o que previsivelmente seria uma refeição de ceviche. Uma coisa estúpida que foi aceite por mero dever profissional de aceitar todas as coisas estúpidas quando propostas veementemente pelos empregados. Não é fácil emparelhar ceviche com bebidas alcoólicas, mas associar peixe a um docinho líquido e enjoativo faz crescer as receitas do sítio mas diminui drasticamente o prazer de comer peixe.
Peixe esse que até estava bom. Tanto assim que a minha amiga, embora a curar uma ligeira intoxicação alcoólica, gostou do shot acídulo do piqueo tres cebiches (24,5€) – e eu idem. O prato traz uma porção de cada receita, tendo sido o tres ajies, amarelecido com um molho de pimentos ají, o que mereceu mais aplausos. Logo a seguir no pódio ficou o cebiche Norteño, com o clássico leche de tigre, à base de caldo de peixe. Por fim, o da casa, com lâminas de polvo e um molho amaionesado.
O peixe branco usado foi pampo, que me pareceu sensaborão, perdendo por exemplo para a habitual corvina.
A acamar esta acidez veio de seguida o prato que o empregado apresentou como o “bestseller se assim podemos dizer” da carta. O risoto de quinoa com lombo de novilho estava cremoso, o grão ligado por molho à Huncaína, típico do norte do Peru e feito de queijo fresco, alho e pimento ají amarelo(17€). Só para tirar teimas sobre a boa qualidade da comida, concluiu-se tudo com a causa Segundo Muelle (13,50€), de puré de batata aromatizado com lima, uma camada de carne de sapateira, por cima molho à chorrillana (espécie de escabeche, com ajíes, claro). Saboroso.
Havia ainda muitas mais possibilidades, numa ementa que é uma espécie de peruano para todos os povos, contemplando desde massas a sushi com fusões andinas, passando por tártaros e até por uma salada mediterrânea.
Agora, quanto vale isto? Cheguei ao fim deste texto com muitas dúvidas sobre quantas estrelas dar. O restaurante não é acolhedor, mas tem um bom ceviche. Tem um preço alto, mas também tem um óptimo risoto de quinoa.
Recorra-se aos critérios. A comida valeu quatro. O serviço valeu três. O espaço e o ambiente valeram três e meio.
Arredonde-se. Espere-se o melhor.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.