Fiz duas refeições recentes na Sete Mares e a comida foi sempre boa ou muito boa, do camarão da costa ao preguinho do lombo, ainda por cima sem filas à porta. Mas não recomendo.
Um restaurante é mais do que comida, e neste, como noutras marisqueiras vividas de Lisboa, há uma vibração má e outras coisas piores. O desencanto teve o seu pico num episódio a que assisti, no final de um almoço. Estava um grupo de cidadãos negros oriundos dos PALOP de saída, já de pé, quando um dos empregados se aproximou e, ali mesmo, perante outros clientes, reclamou da falta de gratificação. Estou em crer que a cor da pele e a origem possam ser relevantes para a história.
Nunca tinha visto tal coisa, mas já tinha visto discriminação de outro tipo em marisqueiras. As cervejarias/marisqueiras parecem-me, aliás, quase sempre sítios inóspitos. Há uns anos, deixei de frequentar o Tico-Tico, em Alvalade, porque o chefe de sala deu prioridade a um “senhor engenheiro”, sem reserva, que ultrapassou monarquicamente a fila de pessoas à sua frente.
Noutras casas do género, observei que o Porsche estacionado à entrada (há sempre lugar para um Porsche à entrada) ou o Rolex no pulso dava acesso a lagosta nacional, enquanto o papalvo de t-shirt comia a da Mauritânia, porventura “da volta” (nome dado ao marisco comprado morto ou em vias disso, a preço de saldo, muito comum).
São sítios onde se analisa a conta bancária dos comensais em menos tempo do que o camarão de Espinho leva a cozer. São empregados que sabem tudo do negócio, que desenvolveram técnicas extraordinárias para levantar a loiça, abrir garrafas de vinhos inflacionados e vender com o mínimo de esforço e o máximo de gorjetas.
Nesta Sete Mares, num dia, ao jantar, chegou um grupo de franceses de fato e camisas brancas aprumadas e logo três empregados os rodearam, só sorrisos e converseta. Da mesma forma, minutos depois, quando meia dúzia de angolanos vestidos com marcas da Avenida da Liberdade se aproximavam do restaurante, do lado de fora, lá dentro, já um funcionário mobilizava mesas para os sentar.
Tudo o que não aconteceu comigo. Sem ar de expatriado rico, nem acessórios de luxo, ao chegar ao restaurante fiquei estacado à porta, a sala semi-vazia e os empregados passando por mim como se fosse transparente, com aquela cara fechada de quem cumpre dois turnos e uma folga por semana, há 30 anos.
Atendeu-me por fim um homem com uma agressividade passiva e monocórdica, que durante todo o jantar, apesar dos meus esforços para o diálogo, foi incapaz de alinhar quatro palavras seguidas e produzir conhecimento ou afecto.
– Sabe o que leva o recheio da sapateira?
– Maionese e pickles.
– Não tem ovas, pois não?
– Não.
Ao almoço, tinha tido uma experiência parecida, “a despachar”.
– Que presunto é este? – perguntou o meu amigo, entusiasmado com a qualidade (ibérico de bolota 100 por cento) e o corte (finíssimo mas mecânico).
– É aquele ali – respondeu o empregado, apontando para umas patas, da marca Beher, penduradas no balcão, ao fundo. É levantar o rabinho e ir lá ver.
E momentos depois:
– E este molho da cabeça de cherne o que leva?
– É molho da casa, é segredo.
Sou sensível ao argumento do segredo culinário, mas a questão é que há demasiadas coisas secretas nas marisqueiras. A balança, por exemplo. Por que não se pesa o marisco na sala? Por que estão as balanças longe da vista? Onde está o ticket da pesagem do cherne? Quando foi a sapateira pesada?
É que não estamos a falar de trocos, mas de dezenas de euros. Estamos a falar de percebes a 130 euros o quilo, de carabineiros pelo mesmo valor. Pode ser tudo limpo, honesto, mas devia também ser tudo mais transparente e, sobretudo, mais civilizado.
Outra situação, nas sobremesas:
– A tarte de amêndoa tinha esta espinha agarrada – informei o empregado, mostrando-lhe uma espinha grande.
– [silêncio, enquanto levantava o prato]
De resto, a Sete Mares tem um ar decadente e sombrio na sala interior, pelo que se aconselha ficar no avançado, se conseguir esquecer que está num avançado. Era, aliás, aí, que se sentava Eusébio, que tinha aqui mesa cativa, hoje peça de museu em sua honra. Suspeito que no seu tempo, a casa teria outra alegria e atenção ao cliente, a todos os clientes, mesmo os que não conseguem deixar gorjetas altas.
Nada me move contra o Sete Mares. Mas fico triste que, num país com tão bom marisco, haja tão poucos restaurantes da especialidade onde nos sintamos confiantes de que não seremos destratados ou não nos sintamos assaltados, se não formos amigos dos funcionários ou milionários.