Esta semana vamos para a periferia, mas não para um subúrbio de betão. Vamos para o campo. Vamos à Manjoeira. A Manjoeira fica a 15 minutos de carro do Campo Grande, que é menos do que se leva do Campo Grande ao Rossio. Entramos na A8 e saímos para Loures antes das portagens, depois em direcção a Bucelas, é virarem onde vos diz o telemóvel.
A estrada tem aquela paisagem típica da região saloia, uma fealdade caótica de casinhas, fabriquetas, armazéns e stands de automóveis, mas também tem hortas e colinas verdejantes e silêncio de aldeia.
O silêncio prolonga-se, aliás, para dentro do Solar dos Pintor, que é uma moradia com café e três salas. Mesmo quando o restaurante está cheio, sente-se lá uma paz campestre. As pessoas falam baixo, sem urgência de protagonismo; os tectos de madeira maciça e as pipas de vinho ajudam a abafar o ruído; e pode ser que haja também reverência por se estar numa casa de família com mais de 100 anos, a casa dos Pintor.
Mal se entra, saltam à vista as travessas de batatas fritas em quase todas as mesas, acompanhamento das carnes de tacho. Na ementa há poucos pratos de peixe e quase sempre duas ou três criações dos Pintor: chanfana de vitela à Pintor, burras (bochechas de porco) à Pintor, carne de porco à Pintor, polvo à Pintor.
Mesmo quando não estão na carta, as miniaturas de pastéis de bacalhau, fritos no momento, são obrigatórias para entrada. Talvez devessem ter mais bacalhau e salsa, mas o prazer de os trincar e engolir de uma vez está garantido.
No cesto do couvert, pode viver uma fatia de trigamilha (broa de trigo e milho) e sempre inclui pão saloio, tipicamente muito hidratado, miolo untuoso à maneira dos de Mafra (e mais seria se não tivesse leveduras em excesso e massa velha em falta). As azeitonas pareceram-me de dupla cura: a primeira industrial, a segunda feita na casa, com boa dose de alho.
Em quatro refeições que aqui tive, ao almoço e jantar, eis os apontamentos de prova dos pratos principais. Nota altíssima para o arroz de polvo, clássico, o carolino bem aberto, o molusco tenríssimo sem estar esbardalhado – e isto em muito, uma dose daria para duas pessoas (não saloias). Não tive a mesma sorte com o polvo à Pintor, ao jantar, versão salteada em alho, acompanhamento de boa batata nova cozida e excelente feijão verde, mas com o polvo já sem elasticidade, para mais com areia nos tentáculos.
Nota alta outra vez para a excelente chanfana de vitela, molho aveludado, muito tempo ao lume, muito vinho e muita cebola. Textura semelhante no ensopado de borrego com batata cozida, o bicho pequeno, hortelã a perfumar tudo (pena não vir num tacho de barro que o conservasse quente por mais tempo, mas numa travessa de louça de multinacional escandinava).
Muito bom também o bife, uma peça de carne enorme e entremeada de gordura, versão à cortador, ou seja, do acém do bovino, que é de todas as peças a que faz o melhor bife na frigideira. Pedi mal passado, veio médio passado e mesmo assim aguentou-se suculento, ovo a cavalo e as incontornáveis batatas fritas a acompanhar, sequinhas, sem aromas maus a óleos passados, fofas por dentro, estaladiças por fora, uma coisa tão simples e tão boa.
Quanto às sobremesas, o estilo é o doce de tasca com twist. Há dois doces da casa, duas reinvenções da cozinheira. Numa delas mistura-se leite condensado e café, no topo lascas de chocolate branco e preto, composição a armar ao chef, tecnicamente impecável e gulosa. Noutra juntam-se natas e gengibre, especiaria pouco saloia mas que funciona aqui bem.
De resto, perfeita a mousse de chocolate, fresca, leve, sem ser excessivamente doce. E muito agradáveis os “manjoeiros”, queijadinhas alimonadas inventadas pela Dona Áurea, mulher ao comando dos fogões, da caixa registadora e de tudo.
Serviço simpático e familiar, nem sempre expedito. Se o puserem na sala dos fundos, cheia de acessórios ligados aos vinhos (de que o dono é fã e coleccionador) e outra tralha empoeirada (livros, aparelhagens, águia do Benfica), pode acontecer que se esqueçam de si e que não o tenham avisado que aquela é “a sala da democracia”, uma democracia onde se fuma como se estivéssemos no PREC.
Nada que não se resolva. É verdade que Dona Áurea tem um semblante fechado, pode ser impositiva e não há nada que lhe escape (se deixar comida no prato, por exemplo, ela vai perguntar-lhe de forma ríspida: “porquê, não gostou?”). Mas donos mal-humorados são muitas vezes sinal de profissionalismo e foco no cumprimento das suas funções, de preocupação em que o cliente saia feliz. É isso que se passa com a Dona Áurea. E é isso que Dona Áurea tem conseguido.
Manja-se bem na Manjoeira.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.