A Taberna Fina fica num primeiro andar de um hotel de luxo e é uma sala pequena, quadrangular, com janelas para a Praça Luís de Camões.
Lá em baixo, em redor da estátua do poeta, pela hora do jantar começa a juntar-se uma multidão em algazarra festiva, antecâmara do Bairro Alto. Cá em cima canta Norah Jones e as pessoas sussurram em ambiente sofisticado, entre paredes escuras.
Está metade da lotação, uma dezena de pessoas – mas os três empregados de sala andam num frenesim. Uma das razões tem a ver com o próprio conceito do restaurante. Como só está disponível uma opção de degustação, com uma dezena de momentos, há sempre qualquer coisa a acontecer.
A refeição começa morna. O vinho escolhido, por sugestão do escanção, um Pegos Claros Reserva 2014, casta Castelão, está muito bom mas deveria ter sido refrescado. Assim acontece por nossa indicação, ainda que ao longo da refeição a atenção ao copo tenha sido intermitente.
Nada que nos distraia do essencial. Eis que chegam os primeiros snacks e é tudo delicado, bonito e saboroso. Num prato, uma bolacha fina de café com iogurte e esferas micro de cenoura; noutro, empada de leitão servida com uma maionese de pimenta; para limpar o palato, um cubo de maçã verde sob uma gota espessa alcoólica. Não se percebe de que é feita essa gota espessa, porque nem sempre se percebe o empregado, de sotaque brasileiro.
Na cozinha, estamos em campeonato Michelin e assim prosseguimos. O amuse bouche eleva ainda mais o nível. Filete de cavala – braseado, húmido e saboroso –, espuma de pepino, pickles picantes também de pepino e um puré de bolbo de aipo absolutamente extraordinário, que nos obrigou a recorrer à falange do indicador para limpar o prato. Chega então o pão e com ele uma empregada mais presente, descontraída e capaz.
A ideia de servir pão e manteiga sem ser no início da refeição não é original. A primeira vez que aconteceu comigo foi no Loco, de Alexandre Silva, mas outros restaurantes passaram a usar esta solução. O pão é o de trigo barbela da padaria Gleba (caramba, está por todo o lado), ainda que este seja mais pequeno, entre a bola caseira e o pão de Rio de Maior, com mais côdea e, portanto, mais sabor e mais crocância. Pena não estar já com a frescura ideal, algo que nem o facto de ter sido tostado previamente disfarça. À parte, duas manteigas muito boas, uma de tomate seco, outra de pesto, com o manjericão forte.
E agora o grande momento da noite. A estética impressiona logo. De cima, só vemos uma rodela perfeita de fiambre. Não um fiambre qualquer, só um raiado de gordura na borda, várias tonalidades. Um fiambre com carne, com textura, com camadas concêntricas. “É da barriga do porco e somos nós que o fazemos.” Ao lado, uma quenelle de puré e pó de amêndoa. Levantamos o fiambre e por baixo temos porco preto em cubinhos, ligado por gema de ovo curada em soja e espicaçado por limão. Pode-se começar por provar cada elemento separadamente, mas é quando tudo se junta na boca que a magia da alta-cozinha acontece.
Caminhando para os principais, o de peixe é corvina. Vem em dois pratos: um com uma bola de focaccia, onde se esconde um filete alto e lascado; outro com o acompanhamento, um trio de aipo, em que se destaca outra vez o puré, untuoso e elegante.
A focaccia, acabada de ser frita em azeite com alecrim, torna-se demasiado massuda e oleosa. Podia fazer sentido como prato único, até, mas não numa degustação. Acabamos por retirar a corvina e comê-la só com os acompanhamentos.
O segundo prato principal volta à carne, desta feita uns fiapos suculentos de borrego, ora estaladiços ora tenros. Em redor, citrinos de várias técnicas, com uns cristalizados a ficarem na boca por muito tempo; lascas de pontas de espargos ligeiramente cozinhados, magníficos; alho francês braseado; couve (de nabiça? amarga e maravilhosa); e um puré de batata fumada para comer à colherada até não se poder mais.
Bem feita a passagem para os doces, com um gelado de limão sobre crumble, por cima uma rodela de tuille de canela. Segue-se uma bolacha com tártaro de chocolate e pólen de mel, ao lado outra de maçã e canela.
Tudo baralhado e dado. A cozinha desta Taberna, a cargo do chef executivo Guilherme Spalk, é de um rigor técnico e estético sofisticadíssimo. Contam-se pelos dedos de uma mão os chefs de Lisboa capazes disto. Há escola Michelin, da boa, com produtos cheios de sabor e um preço ainda assim abaixo do praticado nas mesas estreladas.
A coisa falha no seguinte: a sala não tem alma, não há uma história ali. Esperava encontrar a surpresa que André Magalhães, um viajante recolector, anunciou na abertura. Ter um cheirinho de produto, de cozinha (está escondida), de cozinheiro. Mas tudo o que acontece é o prato a chegar e a partir daquela sala fechada.
A ideia com que se fica é que esta Taberna Fina, emparedada num hotel francófono a cheirar a perfume, ainda não é nem o restaurante de Magalhães, nem o de Spalk.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.