As primeiras 23 vezes que comi na Caparica foram 23 barretes. A culpa nem sempre foi dos restaurantes. O praísta é um ser desprovido de racionalidade e, quando bate a fome, ele entra na primeira porta, seja ela o restaurante de um adepto do Benfica mais conhecido pelas barbas do que pela qualidade das amêijoas à Bulhão Pato, seja um desses tascos à beira da estrada onde se come pó com peixe fresco (no sentido em que uma lula congelada e descongelada e congelada e descongelada pode ser peixe fresco. “Está fresca, sim”, atirou certa vez uma empregada, quando lhe perguntei sobre o atributo do molusco, prostrado numa vitrina, já esfarrapado e baço como um acidente rodoviário).
A verdade é que não há forma de alimentar dignamente tanta gente faminta, há mesma hora, num domingo de Agosto e, portanto – salvo honrosas excepções – o que fazem os restaurantes da Caparica é desenrascar e aldrabar, meia dose e força, carne para canhão, peixe para empadão.
No Verão, aparecem sempre uns “chefs” tubarões a ocupar as esplanadas de meia-dúzia de praias mais trendy, mas cobram 14 euros por cocktails cheios de açúcar e só lá podemos ir se pagarmos o estacionamento e a decoração posh.
Por falar nisso, num país civilizado, os parques das praias seriam gratuitos e não baldios de terra batida cheios de lixo. Num país civilizado, a Caparica também já teria um restaurante de praia de categoria, onde até se poderia servir o carapau das suas águas, porventura o melhor do mundo, e onde se teria um bom serviço de grelha e de sala, eventualmente até com toalha de pano – só para ser diferente. Mas num país pobre, com governantes fracos e de cócoras para o turismo, tem-se deixado o urbanismo à mercê do acaso, de ímpetos eleitoralistas e de investidores privados sem apego à terra, com uns quantos oportunistas a dedicar-se a projectos ora temporários, ora tolos, ora ambos, e com os autóctones a venderem, essencialmente, robalo de aquacultura e bivalves de Alcochete.
Não admira. A Caparica tem dos piores acessos de Portugal, mais sujos e descuidados, e nem a recente entrada no país de estrangeiros na babugem de benefícios fiscais alterou isso. Foram alcatroadas umas estradas, uns passeios, mas ainda não será este Verão que a Costa da Caparica se vai distanciar das estâncias balneares do Norte de África. Para se ter uma ideia do desgoverno e da incompetência, foi em pleno Verão que se acabou com os semáforos à entrada da vila, esses mesmos que durante anos causaram filas imensas, mas não se acabou com o problema. Agora, improvisou-se finalmente uma rotunda, com baias de borracha em forma de círculo e linhas amarelas no alcatrão. A rotunda prova a eficácia das rotundas, mas também a irresponsabilidade de quem deveria ter concluído a obra em tempo útil, e lá mantém aquele estaleiro caótico.
Uma pena, até porque a Costa da Caparica é a praia de Lisboa, e Lisboa é uma das melhores cidades do mundo, também, porque tem a Caparica.
Enfim, serve o desabafo para introduzir um restaurante que tem estado a salvo da barbárie, ainda que tenhamos que andar meia-dúzia de quilómetros do areal até lá, por caminhos secundários. A Taberna Manuel da Gorda fica nas traseiras da Trafaria, que por sua vez fica ali entre a Cova do Vapor e Porto Brandão, bem de frente para o CCB, na margem esquerda do Tejo. A Trafaria é um óptimo miradouro, e melhor seria se não tivesse lá os silos da Solipor, que não só desfiguram a paisagem de quem está na margem sul, como se apresentam como um furúnculo na maçã do rosto de Bella Hadid para quem olha o rio de Belém.
No Manuel da Gorda, todavia, reina a serenidade, o bom produto e a boa comida. Lendo a carta, só se vêem coisas boas. Apetece tudo, desde as entradas de tábua, como cabeça de xara da Dona Octávia (o célebre talho da aldeia alentejana do Cano), aos queijos da Beira Lacte, passando pelos carapaus de escabeche, com camada espessa de cebolada. Há depois, ocasionalmente, uns rissóis de berbigão, que só pecam pela escassez do dito, e quase sempre enguias fritas, que podem ser servidas com arroz de tomate ou batata frita, outro dos ex-líbris da casa.
Nos principais, brilham os ensopados, como o de raia, servido com pão alentejano frito, à parte, mas também com batata cozida, saborosíssima. Pode-se ainda optar por escolhas mais modernas, como o bitoque do mar, no caso com um bife largo de atum fresco, frito à portuguesa, com ovo a cavalo. Ou então por pregado frito com açorda de ovas, estas abundantes, como deve ser, aquele crocante e seco e com a habitual gelatina gorda junto às espinhas laterais.
Nas cortes de carne, vê-se também que há conhecimento, não fosse um dos protagonistas o bife do acém redondo, porventura a peça mais gostosa que um bovino pode dar. E há petiscos cada vez mais raros, como o coelho em vinho tinto, que é depois frito.
A terminar, sugiro o arroz doce de leite de cabra, que na verdade tem mais de natas e leite do que arroz (só disponível em certos dias da semana), mas é muito guloso.
Numa refeição ao jantar que lá fiz assinalei um problema, referente ao óleo dos fritos, que já estava muito marcado por sucessivos usos. Sobre isto, recordo o que um chef espanhol, mestre da fritura, me disse um dia, sobre o seu maior segredo: “Fácil, é só estar sempre a mudar o óleo. Ter sempre um óleo limpíssimo e de qualidade.”
Faça-se o que é fácil, porque o difícil, que é ter mão para o tempero, bom gosto e matéria-prima de qualidade, este Manuel da Gorda já tem, a preços sérios, com um serviço eficiente, numa sala de decoração tradicional e simples, que fica bem com a Trafaria.