O conceito é uma coisa tramada de definir. De Sócrates a Kant, de Aristóteles a Hegel, a história do pensamento ocidental está cheia de conceitos de conceito. Uns falam dele como a essência necessária das coisas, independente de nós, criaturas que as pensamos; outros como a significação arbitrária que atribuímos a qualquer objecto cognoscível, seja abstrato ou concreto. Felizmente para todos, a metafísica simplificou-se. Conceito agora é sinónimo de vaquinha.
Por estes dias, quando um empregado pergunta se já conhecemos o conceito do restaurante, a resposta não falha: o conceito é partilhar. Significa isto que nada do que está na ementa respeita a métrica comum da dose e que tudo se deve conjugar numa geometria petisqueira – se somos dois, aconselha-se três a quatro pratos; se formos três, uns cinco e depois logo se vê, e por aí adiante. É o caso da Taberna Meia Porta.
Da casa sabia apenas o lero lero com que foi comunicada. Um chef com escola francesa e passagem por cozinhas oh là là, mais um sócio “com um background na área de business, formado em Boston e experiência no mercado imobiliário em Nova Iorque”, recuperaram a Floresta do Alcaide, velha tasca no fundo da Bica, e ali se puseram a “recriar receitas antigas com um twist” e a servir “iguarias”, “com conceito de partilha”, “sob o mote make tabernas great again”. Era cosmopolitismo a mais para a minha cabeça provinciana – ou vice-versa, não sei dizer. Sei que o storytelling de pacote me caiu na fraqueza e cheguei ao conceito já a arrotar a preconceito.
Só que depois provei a barriga de porco.
A pança do suíno foi o ponto alto da minha primeira visita – um deles pelo menos, que em rigor não houve baixos, e depois do press release foi sempre a subir. A pele crocante, o toucinho firme, a chicha húmida a desfiar, as camadas numa escala certíssima de texturas, tudo feito com pouco tempero e muito vagar, o bicho mergulhado num caldo de grão guisado com umas folhas de espinafre, um naco de cenoura tostada e umas farripas de cebola roxa. Do caraças.
E o resto andou sempre lá perto.
O menu é enxuto e divide-se em dois capítulos. Um chamado Menor, onde se arrumam nove doses mais pequenas, que vão do pão (excelente, massa mãe filha da mãe e tudo isso) com manteiga e oliva (sim, Fred Frank, o chef, é brasileiro), até aos pratinhos, a que chamaríamos entradas se o conceito fosse outro (tudo até 11€). Estão lá uns notáveis croquetes de sapateira, o recheio meio mousse, mas a sentir-se a carne do bicho e o sabor por inteiro, a pedir pingos de lima e um óptimo picante a acompanhar. Está também um arroz de abóbora guloso, trabalhado estilo risoto com queijo da ilha, cheio de sementes e cebolinho fresco a abrir o bouquet. E estão umas moelas obrigatórias, duas vezes testadas por mim, que duas vezes limpei o molho a golpes de pão: as peças do galináceo cozinhadas na perfeição, sem twists nem piruetas, tenras e carnudas, amaciadas em tinto num refogado cremoso, salsa fresca a perfumar.
A outra parte do menu – adivinharam – chama-se Maior e tem quatro pratos mais compostinhos (15 a 16€). Além da barriga de porco, provou-se daí uma boa espetada de atum, três cubos generosos cozinhados num degradê de cru até ao centro, tomate, nacos de pimento grelhado e um molho cremoso a denunciar vinho, mostarda e pickles, como se fosse um pica-pau.
Percebo a evocação do imaginário taberneiro. Está na inspiração da carta e nos pratos de inox, nas mesas em mármore raiado e na azulejaria antiga, na velha torneira de imperial e nos barris à vista, nas cadeiras em pé de ferro e contraplacado. Mas eu, rapaz do campo e rodado em tabernas, nunca entrei numa que servisse ostras vinagrete nem vinho da casa a 6 merréis o copo, e pelas minhas contas falta pelo menos um bêbado ao balcão.
Nada contra nada disto. As ostras são fresquíssimas (4 un./ 11€, de Olhão segundo informaram) e a emulsão impecável; o vinho a copo vai variando consoante o dia, escolhido de uma prateleira cuidada onde nada é menos que bom; e eu confesso que na última visita já estava bom para fazer figuras. Só que chamar a isto taberna é como chamar marquise a um jardim de inverno.
A Taberna Meia Porta é um lugar cool, exemplar da melhor tendência que se sente pela cidade: malta que anda recuperar receituário português (nem sempre portugueses), que enxerta técnica na cozinha sem a desvirtuar e aposta tudo em bom produto. É um sítio para curtir moelas e Strokes, contar com 30 paus por cabeça, partilhar com quem está à frente e meter conversa com quem estiver ao lado, previsivelmente em inglês. E é bom que se farta.