Faço notar que isto de comer em Lisboa está um balúrdio. Ela responde que balúrdio mesmo, mil vezes maior, é uma renda nesta cidade. Ponho-me a fazer contas e concluo que ela tem razão. Mil vezes. Ainda há três anos eu almoçava facilmente por oito euros e um T2 a 800 parecia caro; hoje vejo-me à rasca para almoçar por 13 euros e ninguém cede duas assoalhadas abaixo de 1300. Confirma-se, há aqui uma progressão em que uma coisa é sempre mil vezes maior que a outra.
Este cálculo faz-se à mesa do Verde Gaio, clássico restaurante familiar de base tradicional portuguesa, plantado no coração de Campo de Ourique, onde tenho reincidido nos últimos tempos e de onde costumam deixar-me sair por 15 euritos, contando que me porte bem e não fuja aos pratos do dia.
A carta é bastante para garantir a frequência sem monotonia. Há quatro a cinco propostas do dia, sempre com algumas miudezas de porco (excelentes as iscas, bons os rins), uma respeitável colecção de petiscos (que também fazem as vezes de entradas), boa oferta de carnes no carvão (óptimo piano, com duas oitavas suculentas), e uma vitrine simpática de peixe para assar (quase tudo bicheza de aquário, como é fatal nesta cidade, mas sempre tudo fresco e com alguns exemplares de mar tratados em grelha capaz).
Acontece, porém, que a experiência de hoje não está a ser a melhor dos últimos dias e temo que a minha amiga me cobre a boa publicidade que andei a fazer do sítio. A ver.
Ela vai numa carne de porco à chefe, que consiste numa pratada de barro com carne feita na frigideira e uma generosa dose de batatas fritas em palito. Um dos segredos do chefe (revelado) é a mostarda; outro (suspeitado) é fritura da carne com pedaços de chouriço, ou então um toque de banha. Em qualquer dos casos – rimos com gosto – o segredo é porco e o resultado é uma receita de ressaca, muito gulosa, já a pingar para o enjoativo. Noutro dia, fiquei mais feliz com a carne de porco à portuguesa, que nunca sai da carta e que me lembra sempre a rábula do Herman José sobre a Última Ceia. No sketch dele, Jesus e os apóstolos comem carne de porco à alentejana na Adega do Barrabás, mas pedem que venham apenas as amêijoas – bem vistas as coisas, ainda são todos judeus. Aqui, o inverso: chega um prato farto de carne e batatas fritas em pedaços de igual cubicagem, a chicha tenra e bem temperada, os tubérculos bem fritinhos, tudo polvilhado de pickles, mas nada de bivalves.
Quanto a mim, vou nos pastéis de massa tenra com arroz de feijão. Óptimos os salgados, a massa enxuta e firme, o recheio bem temperado; menos bom o arroz, sobretudo quando avaliado por uma minhota. O bago é agulha vaporizado e a minha amiga sofre com a ofensa de não servirem um carolino malandro. Passo a citar. “Sabes porque é que fazem vaporizado? Para aguentar na panela e ficar assim, solto. Mas não absorve o caldo e não ganha sabor. Imagina que te serviam batata frita congelada. É o mesmo ultraje.”
Não discuto. Sirvo o resto da garrafa de branco que escolhi de uma carta bem cuidada e toda muito em conta e lá acabamos a concordar no óbvio: o Verde Gaio é um exemplar de preço-qualidade em vias de extinção e isso merece ser inflaccionado com uma estrelinha extra. Volto ao sketch com que o Herman chocou o Portugal beato de 1996 e sorrio da lembrança de Cristo, comentando o preçário da ementa: “A vida está pela hora da morte”.