Num relato apócrifo do qual jamais alguém ouviu falar, quando Jesus diz “quem nunca errou que atire a primeira pedra”, há um artolas que arremessa imediatamente um calhau. “Nunca erraste?!”, surpreende-se o Messias. “A esta distância não”, responde o outro.
Partilho esta história a despropósito e arrisco a heresia para ilustrar a seguinte ideia: a avaliação de um desempenho nunca pode ser desligada do objectivo e do contexto. E daqui salto directamente para o juízo final: na missão a que se propõe, pelos preços que cobra e a qualidade que serve, esta casa não erra. Cinco estrelas e não se fala mais nisso.
A vida de tasca é tramada: é um negócio que exige dedicação, gestão implacável, rotina, rapidez e consistência. Mas há piores. Terá sido isso que Leonor Godinho pensou, quando abandonou o fine dining: up yours!
Leonor lançou-se no MasterChef, cresceu na cozinha do Feitoria, seguiu a escola do método, praticou a alta competição das estrelas. Depois mudou de caminho. Passou pela Musa da Bica, aplicou-se à finger food (sem relação com a expressão up yours) no Vago, um excelente foodbar onde toda a malta é feliz. E agora ei-la também aqui, atrás de um balcão de inox, nos confins de Alvalade, a aviar comida de conforto sobre toalhas de papel.
Na Vida de Tasca há um belíssimo bitoque e uma impecável alheira com grelos, meia dúzia de pratos de grelha (óptimo choco grelhado), mais dois pratos do dia que em nenhum dos meus dias desapontaram. Um arroz de corvina apuradinho, peixe cheio de sabor, boa mescla de pimentos; umas salsichas Merguez bem perfumadas, com umas batatas divinais acabadas no forno; uma lagarada de choco a preceito, bem amaciada pela tinta do bicho.
Somem-se bons pasteis de bacalhau e melhores croquetes, chouriço assado e vinho a jarro, conversas de vizinhança e paz de bairro, uma mousse de chocolate do caraças e cafés com cheirinho. O resultado é uma clientela fidelizada em menos de um fósforo. Uns já frequentavam a Tasca do Alberto, que aqui funcionou 40 anos; outros perseguem o hype taberneiro que anda a tomar conta da cidade. Sem reserva é difícil almoçar, jantar nem pensem nisso. Ainda assim, a casa abriu em Maio e em Agosto meteu férias.
Leonor pertence a uma leva de novos cozinheiros animados por duas ideias: a de que é possível ter vida na cozinha sem deixar de ter vida própria; e de que há oportunidade de fazer boa cozinha, enxertando técnica na tradição e recuperando as tascas que o tempo ameaça. A primeira é para seu benefício, a segunda para o de todos nós.
*Este artigo foi originalmente publicado na revista Time Out Lisboa, edição 671 — Outono de 2024.