Há uma tendência na vida para nivelar por baixo. Afrouxamos se o pelotão não pedala, distraímo-nos se a concorrência é fraca. Acontece assim em tudo na vida – e na restauração é igual. Um restaurante mau arrasta outros restaurantes maus.
Em Lisboa, existem algumas zonas gastronómicas niveladas por baixo. Vem logo à cabeça as Portas de Santo Antão, uma rua com mais armadilhas gastronómicas do que pedras na calçada – e logo a seguir o Bairro Alto, a Rua Augusta, a Rua dos Correeiros, as Docas.
Sucede que em todas estas lixeiras encontramos faróis cercados por náufragos, gente limpa no lamaçal, erva verde entre cinzas – casos extraordinários de superação, verdadeiras excepções ao nivelamento por baixo. É sobre uma dessas excepções que vos quero falar.
O Windsurf Café tinha tudo para ser mais um pré-fabricado com más batatas fritas e hambúrgueres de grossista. Instalado no paredão de Carcavelos, está cercado de barracas com fast food, por vezes travestida de comida tradicional. Já comi em algumas, já vi comer noutras. É quase tudo entre o intragável e o mais ou menos, mas nada disto desmobiliza quem quer que seja. Cada um daqueles restaurantes anda sempre compostinho ou cheio ou com filas.
A razão do fenómeno é fácil de perceber. Ter um restaurante na praia vale ouro. Não apenas por causa do privilégio paisagístico, mas porque uma pessoa sai da praia e está disposta a comer cortiça. Há uns meses, depois de chapinhar nas ondas, fui a um destes sítios à beira-mar. Serviram-me uma dose de choco frito com maionese que engoli com imperiais e fiquei muito feliz. Uma semana depois, mas num almoço sem apetite, pedi o mesmo e já me pareceu pota frita encharcada em óleo de palma com batatas encharcadas em óleo de pota frita. Fiquei muito triste.
Até que descobri este lugar. O Windsurf Café começa por ser logo arrumadinho e bonitinho, com madeiras e pedra, como uma casa campestre. Depois tem uma cozinha a sério, aberta, com cozinheiros a sério, que podemos ver a trabalhar. Tenho-lhes a agradecer várias coisas que lá comi em dois almoços na semana passada. A mais valiosa delas foi o polvo à lagareiro (14€), um dos meus pratos favoritos do receituário nacional, raramente cozinhado a preceito. Aqui, veio num prato com batatas a murro esmurradas na medida certa para que o azeite se infiltre, abraçadas por vários tentáculos de polvo pequeno, numa composição belíssima (os polvos dão as melhores composições). Em redor, uma poça de azeite com alho e salsa e um pico bom de malagueta. A textura do bicho estava perfeita, nem borrachoso nem esfacelado, com um toque leve de grelha – e ficou ainda melhor com umas pedras de sal grosso por cima e um golpe de vinagre. Um bom lagareiro é raro, um bom lagareiro em cima do areal é um achado ao nível daquele prédio de 350 mil euros em Alfama.
O meu amigo foi na carne e foi bem. Bife do lombo com cogumelos portobelo frescos, envolto num clássico molho de natas abundante e cremoso (14€). Por um prato deste nível num restaurante de chef no Chiado pagam-se 18€ e não se tem direito à maresia nem ao desfile de fatos de banho, esse acessório cada vez mais acessório.
Continuando. A ementa também tem os clássicos de praia, das tostas às saladas e não faltam os hambúrgueres – tudo bem feitinho. E depois arrisca- se nos petiscos, saborosos e apresentados com cuidado e bom gosto. Provaram-se a salada de polvo (7€), o camarão picante (7€) e o pica-pau do lombo (8€), que suscitaram comentários de “bom” e “bem bom” e “esta salada tem falta de vinagre” e “estes camarões estariam perfeitos se menos secos”. Veio vinagre a pedido e era o tinto do Esporão, o que por si vale uma salva de palmas e os dois euros a mais que se paga no final das contas comparativamente com a factura média na concorrência.
Serviço difícil, sempre muito atarefado. Calhou-me nas duas visitas uma rapariga liceal, educada e esforçada. Não percebia nada do que ali se comia, mas teve presença de espírito para actuar bem numa situação difícil: o pica-pau da vazia veio demasiado passado e a mesa fez-lhe notar isso; ela ficou tensa, teve três segundos estática para decidir e decidiu bem: agarrou na frigideira, levou-a para trás e trouxe outra com a carne mal passada.
O Windsurf Café é uma brisa agradável numa costa cheia de tormentas gastronómicas. Tem bom gosto, vontade de fazer bem e essa fibra de que são feitas as pessoas que lutam contra a mediocridade.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.