Há poucas refeições mais solenes e intensas do que uma pessoa sentar-se num bom balcão de cozinha japonesa, ao estilo omakase, e ser servida como se estivesse num templo. É uma experiência que toda a gente que gosta de gastronomia deve ter, nem que seja uma vez na vida.
São já alguns os balcões omakase que apareceram em Lisboa, nos últimos tempos. O conceito implica que o cliente fique nas mãos do chef, mas do outro lado há o compromisso de só se usarem os melhores ingredientes da época.
Nesse sentido, o menu omakase está frequentemente associado a outra filosofia culinária: a degustação kaiseki. Os menus kaiseki existem há séculos e são a mais elevada experiência gastronómica que se pode ter no Japão. Aqui, o termo é usado de forma modesta – e bem, porque conseguir um kaiseki sério exige mais técnicas, mais preceitos, outros ingredientes.
A ideia de o chef servir o que há de mais fresco no mercado e na natureza, em todo o caso, costuma estar na base do omakase (ainda que, vezes demais, vejamos os mesmos peixes o ano inteiro – e aqui não foi excepção, exemplos da dourada e do robalo).
Portugal tem boas condições naturais, de produto, para ter dos melhores omakase da Europa, mas normalmente falta aos cozinheiros portugueses a dedicação, o estudo e a paciência para conseguirem omakase de alto nível. Neste tipo de cozinha, os mínimos detalhes contam e há um requinte estético notável
Nestas circunstâncias, têm reinado por cá os chefs brasileiros, muitos deles com escola japonesa. Como é sabido, o Brasil abriga uma enorme comunidade japonesa e tem dos melhores restaurantes japoneses do mundo (sobretudo São Paulo). A cozinha japonesa está lá enraizada há muito tempo, com bons tutores.
É o caso de Habner Gomes, que por cá já passou por outras casas de referência, como o Hikidashi e o Mattë. No Mattë, em particular, começou a caminhar para a excelência e para as degustações kaiseki (comi lá muito bem). Aqui, todavia, estamos um passo acima. Em tudo.
O jantar que lá tive recentemente contou com nove momentos e foi de um nível muito alto. Habner esteve sempre focado. Inicialmente, o seu estilo pareceu bruto, quase militar, e talvez influencie nisso a musculatura protuberante. Com o avançar da refeição, os comensais foram relaxando e Habner tornou-se também ele mais descontraído, tal como, aliás, o serviço de sala – impecável em tudo.
O início foi bom, sem ser excepcional, com lírio em ponzu feito com “yuzu nacional”, corte fino sakizuke; depois outro corte, mais grosso, de bonito, peixe da família dos atuns, devidamente maturado, com sabores metálicos pronunciados.
O primeiro momento sublime aconteceu com o fígado de tamboril, curado em saké, uma ficha de casino gorda e densa, delicada, com wasabi fresco no topo. Deixei esta espécie de foie gras do mar ensopar bem no molho dashi, elegantíssimo, e quase chorei de prazer.
Baixou um pouco o nível no prato seguinte, otoro em sashimi, com ovas de ouriço e de salmão no topo. O otoro – a parte mais gorda do atum – estava ligeiramente tenso. A temperatura a que foi servido não terá ajudado, muito frio (eu prefiro à temperatura ambiente, entre 21 e 24°C), problema que já se tinha verificado nos dois primeiros pratos.
Outra falha do prato foi o excesso de ovas de salmão, que se sobrepôs a tudo o resto, salgando demasiado o conjunto.
Rapidamente veio a redenção, contudo. O bacalhau negro grelhado é quase difícil de falhar. Mesmo se este não pareceu dos mais gordos e suculentos, estava bem cozinhado num miso guloso, aromatizado com molho de sésamo.
Outro ponto alto foi a sopa miso de amêijoas. De uma elegância comovente, com tudo no sítio, as amêijoas do Algarve carnudas e saborosas (coisa rara).
Por fim, chegaram os niguiris, para muitos o ponto alto do menu omakase. Peças de arroz moldadas à mão sob uma fatia de peixe, tudo já temperado. Habner corta de forma muito limpa e precisa e usa um arroz de qualidade – segundo o próprio, o Yumepirika, de Hokkaido –, um bago que mantém muito bem a estrutura. Foi servido al dente, com um vinagre de arroz envelhecido, sem adoçantes, naturalmente.
Entres os peixes dos niguiris estavam vários nobres, da dourada ao goraz, passando pelo robalo e o akami. Tudo impecável, momento solene, celestial, num ritmo perfeito, os niguiris entregues em mão pelo chef.
Continuou-se em bom, com aumento de hidratos à medida que se aproximava o fim, logo com o makimono de cavala braseada sobre um bolinho de arroz, com a alga nori a servir de guardanapo, pré-aquecida ali à nossa frente, num bico de lume portátil, para ficar mais crocante.
Seguiu-se um katso sando de lombo de atum, belíssima sandes de pão brioche fininho, com uma maionese caseira de wasabi na dose certa, só para um extra punch.
Final doce com uma bolacha de amêndoa torrada e gelado de baunilha, bom, sem ser extraordinário.
Em síntese. O YŌSO é, provavelmente, um dos omakase mais consistentes da cidade. Habner é um chef rigoroso e ambiciona ganhar a estrela Michelin. Tem comida para isso e serviço de sobra em qualidade e quantidade (eram quase três pessoas a tratarem de nove comensais, muito bem dirigidas por José Balau, chefe de sala e sócio de Habner). Todas as regras do serviço Michelin foram cumpridas, da cadeira empurrada pelo empregado, à atenção aos copos.
O menu custou 95€. No final, com dois copos de saké e águas e café, acabou nos 140€. É um preço justo, mesmo que pudesse ter havido mais variedade de técnicas, produtos sazonais, e um ou outro luxo.
Não sei se vai ter a estrela ambicionada, porque não é fácil dar estrelas a japoneses na Europa. Mas que é de topo, é.
*Esta crítica foi originalmente publicada na revista Time Out Lisboa, edição 671 — Outono de 2024.