Antes de chegar ao Bairro Alto, Zé Varunca chegou a Oeiras. A família saiu de Estremoz para a Parede em 2002 e dois anos depois instalou a sua cozinha regional com as loiças de barro pintadas a condizer no centro da vila. Desde Dezembro de 2021, estão numa nova morada, na Avenida Engenheiro Bonneville Franco, em Paço de Arcos, mas a comida é a mesma de sempre: cozido de grão com vagens, sopa de cação, açordas, sopa de tomate, ensopado de borrego, pezinhos de coentrada e por aí fora em doses que alimentam uma família. No final, desça até à praia para fazer aquela caminhada que sempre ajuda à digestão.
Crítica
Suspeito que o segredo é porco. Ninguém me diz, também não pergunto. Há por aí quem finja alternativas com manteiga – banha da cobra, digo-vos eu! A melhor doçaria tradicional portuguesa tem algo de porco. Dos coscorões aos pitos de Santa Luzia, tudo porco. E os conventuais, abençoados sejam, são os que mais dão no toucinho.
É o caso do tecolameco, uma tarte achatada à base de amêndoa. Neste regresso ao novo Zé Varunca, o meu amigo e eu fechamos o almoço com esta preciosidade conventual. É o meu sonho húmido de sobremesa e o pesadelo de um vegan circuncidado: ovos às dúzias e um naco de banha. Mas é, sobretudo, o final exemplar para uma refeição que, das entradas ao digestivo religioso apuro o melhor cânone da cozinha alentejana.
O almoço esteve quase a ir com os porcos. Sexta-feira, 12.45, já se recusa clientela. Sem reserva, nada feito (fica o aviso). Por sorte, resta uma mesa para dois. É a primeira vez que visito o Zé Varunca em Paço de Arcos, depois de fechar portas em Oeiras e no Bairro Alto, e antes na Rua de São José. Frequentei todas essas moradas. Regresso hoje com quem me apresentou à casa, era ainda na Parede.
Temos portanto, o meu amigo e eu, longa experiência disto, além de já termos corrido juntos todo o Alentejo deste mundo. É por isso com cagança que sentenciamos: tudo segue consistente há pelo menos 20 dos 40 anos que a casa tem e continua difícil acusar-lhe pontos fracos. Como continua difícil recusar a roda de petiscos que monta a cilada, com a cumplicidade do pão de trigo – tostado no forno, ainda a fumegar. Escapamos por pouco, duas entradinhas de raspão. Destaco as maravilhosas batatas fritas às rodelas, coladas aos pares em redor de um paio de porco preto e envolvidas numa pincelada de ovo.
Nos pratos, estreio-me no coelho assado à São Cristóvão. O bicho bem tostado, mas húmido, banhado com a gordura que o cozinhou e onde sobressai o toque certeiro do vinagre, outro segredo que atravessa a cozinha alentejana, do escabeche à doçaria, passando pela desinfecção de superfícies. Acompanham uma óptima batata pala estaladiça e um esparregado meloso, que também montam guarnição ao segundo prato. Pediu-se língua de vaca estufada e mal damos com ela nos dentes concordamos que este é o ponto alto do dia. A carne finamente fatiada, a desfazer-se num molho a preceito, saborosíssimo e cremoso, que terá custado umas horas e a vida de algumas cebolas.
Junte-se um tinto, escolhido de uma longa carta exclusiva de alentejanos a preços razoáveis (em regra, duplica o preço de garrafeira), e temos duas certezas: que a instituição continua altamente recomendável, e que a tarde de sexta-feira perdeu qualquer perspectiva de produtividade. Encolho os ombros. Remato com café, uma pequena amostra de boa aguardente da casa e outro segredo da gastronomia alentejana – a sesta.
*Os críticos da Time Out visitam os restaurantes de forma anónima e pagam pelas refeições.