Quando disse a um amigo que a vinha entrevistar ele recordou uma criança a quem uma vez ouviu dizer: “Só me dão livros que ensinam coisas”. Diria que a imposição, para um público jovem, pode ser o princípio do erro?
Essa frase é maravilhosa. Há coisas que sabemos que temos de passar às crianças, conhecimento, mas também valores, o legado do adulto que tem de educar a criança para que ela tenha ferramentas para ser feliz. Isto de uma forma mais genérica. Depois em relação à programação artística para as crianças há espaço para muitas coisas, e também para que elas sejam didáticas.
Como por exemplo?
Há pouco tempo comecei a fazer uma colecção de miniconferências sobre assuntos quentes, com os quais nós adultos nos estamos a cruzar repetidamente. Elas não só reproduzem um modelo de conferência, para que as crianças entendam o que é uma conferência, como são a melhor forma de explicar um assunto a uma comunidade.
Há lugar para todas as coisas.
Exacto. Como uma refeição: é importante comer sopa, depois o prato, e não quer dizer que não haja doce, mas é importante que haja fruta. A grande questão é se temos os mecanismos certos para fazer com isto chegue às crianças.
Para fazer com que goste de sopa.
Para fazer com que a criança se envolva com esse assunto e até alinhe. Nós aprendemos muito mais através dos sentimentos. Tudo o que é imposto, normalmente encontra no outro uma ameaça. E quando ameaçados não estamos tão disponíveis. Aprendemos sempre mais pelo amor. Quando gostamos de uma professora aprendemos mais facilmente.
Recuemos um bocado. Começou em 2001, no Teatro do Campo Alegre, no Porto.
Nem sequer tinha trinta anos, tinha uma corrente de ar permanente na minha cabeça e uma grande vontade de correr riscos. Com uns amigos organizávamos uns recitais de poesia, o Teatro do Campo Alegre estava a começar e convidou-nos. Na altura, mesmo para fazer recitais uma pessoa tinha de entregar o curriculum. Já fazia oficinas em bairros, organizava recitais de poesia com amigos, dava aulas, fazia vozes para desenhos animados, era assim uma miúda muito activa, a querer descobrir coisas. Por saberem esse meu curriculum perguntaram-me se gostava de abrir um departamento infantojuvenil no Teatro do Campo Alegre. Portugal tinha na altura uma grande referência e única, que era o CPA, programado pela Madalena Victorino.
O que respondeu?
“Agora tenho de ir para Marrocos, de carro, com uma amiga, já está combinado, e depois vou produzir um documento a dizer-vos o que acha que posso ser. Se acharem que é isto tudo bem, se não não sou a pessoa certa”.
O que dizia o documento?
Dizia que havia três áreas importantes de explorar: o teatro/dança, a música e as artes plásticas. Acreditava que assim era possível criar algumas pontes com outros programadores e era algo muito refrescante porque não havia quase nada do género. Cresceu mais depressa do que imaginava.
Apontaria a esses três vectores se tivesse que fazer um documento do género hoje?
Ahhh, não. Não é que não lá estivessem, mas pensaria noutras coisas. Na altura não sabia o que sei hoje, nem não sabia o que não sabia.
Dizia que à época existia o CPA, da Madalena Victorino, e pouco mais. O que é que mudou?
Olha, quando começam a aparecer os teatros municipais nas capitais de distrito, no início dos anos 2000, era essencial que se formassem públicos, formação é mesmo construção, promover alguma regularidade e relação, nomeadamente no trabalho com as escolas. Formar públicos não era só proporcionar-lhes uma colecção de propostas que lhes apurasse o sentido crítico, era efectivamente aproximar as pessoas de um espaço que é fechado. Os teatros são espaços públicos.
Mas bastante fechados em si.
Sim, as salas não têm janelas, entramos directos para o escuro, era preciso mostrar o que havia dentro destes equipamentos. Depois também se percebeu que era necessário que estas pessoas que estavam nos serviços educativos deixassem de ser técnicos, mas que tinham de estar dotados de conhecimento e de tempo para investigar e dedicar-se mais a estas áreas.
Portanto, o trabalho com os pais, com as famílias, é fundamental.
Sim, com os adultos, é sempre um adulto, um pai, um professor, um tio, um amigo mais velho, que decide se a criança vai ao teatro. E repara, há uns cinquenta anos uma notícia sobre crianças vinha minúscula na última página de um jornal, hoje as crianças estão na ordem do dia, há uma maior preocupação sobre o que é o nosso futuro. Isso mudou bastante, é por isso que as crianças têm hoje muito mais propostas.