Pedro Abrunhosa
© Marco DuartePedro Abrunhosa
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Pedro Abrunhosa: “Um disco é um processo dialéctico, de dúvida do princípio ao fim”

Vinte e cinco anos depois de ‘Viagens’, o seu primeiro disco, chega agora às prateleiras ‘Espiritual’. Falamos com o cantor sobre a política, a dor e o consolo da sua música, mas também sobre aquela vez em que se algemou ao Coliseu

Mariana Morais Pinheiro
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Hoje é Dia Mundial do Compositor [15 de Janeiro]. Neste teu novo disco, Espiritual, há novamente uma grande carga política e social nas tuas músicas, como a Amor em Tempo de Muros, uma clara referência a Gabriel García Márquez e a Trump. O compositor tem um papel educacional?

Não diria educacional. O que o compositor faz, como criador que é, é absorver a matéria do seu tempo, expele-a, transforma a realidade. Seja no cinema ou na pintura, o autor usa a matéria e é isso que define a contemporaneidade. É a capacidade de usar o seu tempo e, de certa forma, de o cristalizar, porque podemos datar a História da Humanidade através da História da Arte. E, nesse sentido, a canção não foge à regra. Por isso, a intenção não é alertar, é ficar bem comigo mesmo, sabendo que vivendo neste tempo fui testemunha disto e que o expulsei de dentro de mim. Não tenho uma intenção pedagógica. Até porque esse tipo de pedagogia é sempre moralista.

Ou seja, a tua música funciona como catarse?

O “Talvez Foder”, por exemplo, que é um grande êxito e antecedeu o Viagens, tem uma força política brutal, uma abordagem de rock muito forte sobre a política internacional da altura. Falava de Há mortos na Palestina/ E há feridos em Israel, falava na Irlanda, falava na Índia com Há fome em Bombaim. Dizia uma coisa quase premonitória: Há fascistas em Berlim e em Moscovo/ É o discurso que de velho se faz novo/ E eu e tu o que é que temos que fazer? E a resposta da turba, como um coro da tragédia grega, era Talvez foder/ talvez foder. Não era pedagogia, era um testemunho da altura. E o artista que não testemunha o seu tempo corre o risco de ser um entertainer. E não é bem isso que eu sou, embora haja um lado lúdico. “Amor em Tempo de Muros” ou “É o Diabo” têm a ver com toda a tradição da minha escrita, como disseste. O “É Preciso ter Calma” é uma carta de despedida a alguém que está a morrer com sida. Em 1994 chamávamos as coisas pelos nomes e tal não existia no rock da altura.

Mas quem junta 200 mil pessoas nos Aliados também pensa no público. Não pode ser um processo catártico só para ti.

Curiosamente, na minha música acontece um cruzamento de vectores que faz com que ela encontre eco nas pessoas. Há uma simbologia de agregação. Isto tem a ver com a palavra, com a profundidade das músicas, percebes? Tem a ver com o reflexo que as pessoas encontram nas minhas músicas. E com o facto de também elas se poderem exorcizar juntamente com outros milhares. Dirigi o “É o Diabo” àqueles que foderam o país através da usurpação de meios públicos e do dinheiro que é de nós todos. Mas depois também há uma catarse emocional. “Para os Braços da Minha Mãe” é um exemplo disso.

Essa música surgiu numa altura em que acontecia uma grande fuga de cérebros [2013]. Muita gente da minha geração saiu de Portugal, eu inclusivamente. A minha mãe fartou-se de chorar quando a ouviu. Tinha as duas filhas fora do país.

Ainda bem que isso aconteceu. Ajudou a mitigar a dor, certamente.

Já que falamos de dor. O videoclipe “Amor em Tempo de Muros” foi gravado no México. Todo ele é dor e palavras bem tratadas. É bonito.

Essa canção apareceu há dois anos, estava o Trump a ser eleito com um discurso falacioso, dizia que do Sul é que vinha a ameaça e falou-se em muros nessa altura. Esta expressão “amor em tempo de muros” surge, como disseste, de uma metástase do grande mestre literário García Márquez e achei que seria interessante falar sobre o que é o amor num deserto. Há famílias separadas por toda a parte, olha Israel, Palestina, a Coreia. A letra surge a partir de uma família que se separa. E quem melhor do que a Lila Downs para a cantar? Ela é uma mulher de fibra.

Além da Lila, neste disco juntaste muita gente, como Lucinda Williams [EUA], Carla Bruni [França] e Ney Matogrosso [Brasil], representantes de países que estão, de certa forma, a enfrentar um certo desafio democrático. Foi de propósito?

Não, infelizmente foi uma coincidência, e isso quer dizer alguma coisa em termos estatísticos. O Brasil na altura não era do Bolsonaro e agora é. É assustador...

“Vamos levantar voo/Longe das trevas” e “Amor sem tempo e sem muros” são mensagens de esperança implícitas nas tuas letras. Tens esperança que isto não descambe?

Viver na esperança é mau. Quando se está na esperança de alguma coisa é porque se está na ausência dela. Se eu digo: ‘eu espero que a democracia não colapse’, já é mau. Dito isto, que é um devaneio filosófico, claro que as músicas são de positividade e de esperança. Depois de um espectáculo, as pessoas querem regressar para um sítio que as aconchegue, esse sítio é a família, é a casa. A arte é o resgate das pessoas à trivialidade da vida.

E uma espécie de consolo também?

Sim, a minha música sempre teve essa toada. Há razões para acreditarmos, mas não podemos ser passivos. As novas gerações são responsáveis pelo que vai acontecer. É preciso não esquecer que há 80 anos houve um sujeito que foi eleito com as mesmas promessas do que estes, que ia resolver os problemas de toda a gente. Em contrapartida assassinou, nos fornos crematórios e em câmaras de gás, seis milhões de judeus e muitos outros por toda a Europa. Foi eleito democraticamente e chamava-se Adolf Hitler. Porquê? Por causa do alheamento das gerações e das elites artísticas que se demitiram de intervir na altura. É preciso ter muito cuidado. A liberdade não é um bem adquirido. Estamos a caminhar num sentido em que as empresas dominam, mandam. As empresas mais valiosas do mundo – a Amazon, a Google, a Yahoo, o Facebook – dominam de uma maneira sinistra, manipulando os nossos dados pessoais e fazendo o mesmo com os resultados eleitorais. Tens o caso dos EUA e, no Reino Unido, o Brexit. Isso tem implicações tremendas e, um dia, se não tivermos em atenção esta realidade, pode aparecer alguém com um discurso fácil e, recordo, o discurso dos populistas é sempre muito fácil, e nomeia um inimigo. Para o Hitler eram os judeus, para o Trump são os mexicanos. Tenho algum receio que isso possa acontecer em Portugal com alguém mais hábil.

Voltando ao Espiritual, o que é que te deu mais prazer fazer neste disco?

Sou um grande admirador da Lucinda Williams. [“Se Tens de Partir Não me Contes”] foi uma das músicas que mais me orgulhei de fazer. Ela é a grande voz da geração poética (ela e o Dylan) do country, e deu à música um charme irresistível. Juntar duas línguas diferentes é sempre um desafio.

Foi difícil?

Neste disco foram envolvidas para cima de 200 pessoas. Um disco é um processo dialéctico, de dúvida do princípio ao fim. O meu primeiro disco demorou 33 anos a fazer [risos]. É verdade. O Viagens, que me catapultou, precisava de vivência.

Faz precisamente 25 anos agora...

Exacto, mas é mais do que isso, começou muito antes. Antes do Viagens já havia um percurso no Porto e no mundo. Era músico de jazz, era contrabaixista, e isso tinha-me conferido uma rodagem e um know-how extremamente importantes. O Viagens soma, para trás, 15 anos de experiência de estrada. Dos clubes de jazz em Londres aos de Portugal onde fui professor. Toquei nos sítios mais sórdidos que possas imaginar, onde se fazia música em bares de má fama. Isso permitiu-me escrevê-lo.

Estás diferente em relação a esse primeiro disco, enquanto músico?

Acho que sim, espero bem que sim, ficar preso a um modelo e a um tempo não faz sentido nenhum. Tudo à volta é um crescimento, é reacção, é maturação, é análise, e tu vais-te posicionando. Passei pela música clássica, pela contemporânea, pelo jazz, pelo funk. A raiz do que eu faço é o gospel.

Ainda é um trabalho muito exigente para ti?

Claro, forço-me a vir para aqui [Vila Nova de Gaia, onde tem o estúdio] todos os dias. O acto criativo precisa de trabalho e de dedicação. Não surge quando estás debaixo de um coqueiro. Essa imagem romântica da criação é uma falácia.

Quantos instrumentos tocas?

Bem não toco nenhum [risos]. Toco piano à minha maneira, toco contrabaixo, bateria já toquei melhor e guitarra também. Houve uma altura, no meu primeiro grupo, que se chamava Magrinhos e Feios [risos] – parecia uma banda punk mas não era – onde eu tocava guitarra. Já ganhei a vida a tocar guitarra, em 1976/77. Corria a Europa a tocar na rua, daí o disco se chamar Viagens.

Esse primeiro disco, o Viagens, editado em 1994, torna-te conhecido. No ano seguinte, usas essa popularidade e algemas-te ao Coliseu [a sala de espectáculos estava em processo de compra pela IURD]. Isso marcou toda uma época, são poucos os que não se lembram das imagens que passaram de ti na televisão. Precisamos de nos algemar ao Porto?

Na altura não havia redes sociais, foi preciso um acto simbólico. Isso acabou por galvanizar muita gente. As pessoas da periferia da cidade, desde Braga a Aveiro, vieram até ao Porto para defender a sua sala de espectáculos. Conseguimos e a venda foi revertida. Hoje, a consciência cívica é grande e a política dos dirigentes autárquicos muito diferente. Naquela altura não houve a percepção, mas hoje o poder autárquico está de tal maneira escrutinado e atento, que isso não seria possível. Mas há questões no Porto que é preciso salvaguardar, nomeadamente, o turismo. Tem efeitos benéficos, mas também tem outros que é preciso encarar com seriedade.

Quais?

O Porto estava abandonado, tinha as fachadas a ruir, a cidade estava pobre. O turismo resgatou-a pelas mãos dos portuenses. Foram eles que fizeram esse trabalho. É preciso preservar os portuenses e o património e não cair na tentação de transformar o Porto numa monocultura para turistas, sob o risco de nos tornarmos uma fachada. O turismo tem o perigo de hegemonizar as cidades e de as fazer iguais. Depois, incentivar a habitação familiar e jovem no centro da cidade e garantir que a academia permaneça no Porto e não comece a fazer pólos dormitórios fora. Só assim é possível rejuvenescer.

O Porto ainda é a tua terra prometida, como cantas em “Vem ter Comigo aos Aliados”?

É, claro. Nasci na Sé, vivi no Bonfim, mudei-me para Campanhã e continuo a viver na cidade. Lembro-me da drogaria debaixo da casa dos meus pais, da mercearia do senhor Carlos, da papelaria da dona Isilda. Lembro-me dos pregões das biscoiteiras que batiam à porta. Passei tanta coisa boa nas ruas desta cidade e não me lembro das coisas más. Podia ter-me mudado para qualquer sítio no mundo, mas escolhi ficar. O Porto tem um fascínio sobre mim e não me vejo a viver em mais lado nenhum. E é com muito orgulho que te digo isto.

Como seria um dia perfeito no Porto?

“Tomo o pequeno-almoço na Tavi, na Foz: uma meia de leite e tudo o que não tenha manteiga, uma tosta de fiambre, por exemplo, e um sumo de laranja. Depois, uma visita a Serralves e uma ida à Baixa. Um café no Guarany ou no Majestic, entre os dois o meu coração balança, e vou à Fnac ver os livros, uma obsessão minha, ou à Bertrand, perto das Galerias de Paris. Almoço vitela assada em forno de lenha na Cozinha do Manel, que era um restaurante da resistência antifascista, e faço uma visita à Galeria Mira. Vejo um espectáculo na Casa da Música e janto na Xícara, onde como uns filetes de pescada. Acabo na Casa das Artes a ver um filme e volto para casa pela marginal, a pé, porque a essa hora já não há eléctricos.”

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