(Entrevista originalmente publicada na Time Out Porto 91, de Outubro de 2017.)
Trocaste o Porto por Lisboa quando foste tirar o curso de Cinema na Escola Superior de Teatro e Cinema.
Fui no final dos anos 80. Já tinha a noção de que ia ser muito difícil fazer carreira no cinema no Porto.
E agora?
As coisas mudaram bastante, mesmo a forma de produzir. Para alguém que tenha vontade de fazer um filme hoje em dia não é absolutamente obrigatório, do ponto de vista técnico, que tenhas que estar numa capital. Mas é verdade que, em termos de carreira profissional, é igual em todos os países: tem de ser feita nos centros de decisão, que estão nas grandes cidades, normalmente nas capitais. Para mim, a troca do Porto por Lisboa foi um casamento por conveniência.
O que é que o Porto te diz em 2017?
Ainda me diz bastante. Não vou tão frequentemente como gostaria mas quando vou fico muito contente e admirado com a forma como a cidade se tem desenvolvido nos últimos anos. Não falo só do que é geral (o urbanismo, a forma de viver a cidade) mas também do que se faz, sobretudo do ponto vista cultural. No final dos anos 80 deixei um Porto um pouco provinciano, para o bem e para o mal, com um olhar atravessado em relação a Lisboa e às outras cidades. Hoje verifico que as pessoas do Porto continuam a ter orgulho em si mesmas mas já não olham desconfiadas para a capital.
Foi fácil afeiçoares-te a Lisboa?
Foi. Afeiçoo-me facilmente a qualquer lugar, o que dá jeito porque viajo bastante [risos]. Senti-me em casa em quase todos os sítios onde estive.
Passaste a infância e adolescência em Valadares, Vila Nova de Gaia, que não é exactamente o olho da tempestade artística e cultural. Como é que se mergulha no cinema a partir de um subúrbio?
Na adolescência tinha alguns interesses na área artística, fundamentalmente música. Era frequente, nos anos 80, os adolescentes pretenderem ou, em alguns casos, como o meu, conseguirem ter uma banda de garagem. Mas também tinha um interesse muito particular por realizar coisas no teatro e fiz uns cursos no Porto. Ao mesmo tempo, encontrei um outro prazer/ hobby que rapidamente se consolidou, a fotografia. E, obviamente, fui descobrindo o cinema – através do teatro.
Através do teatro?
A oferta que havia no Porto era de cinema comercial americano; muitos filmes de entretenimento, o que para mim não era estimulante por aí além. A grande descoberta de um outro tipo de cinema foi tardia e deu-se via televisão, através de uns ciclos excelentes na RTP2, filmes do Bergman, Antonioni, Hitchcock, a que se juntaram umas sessões do Cineclube do Porto no final dos anos 80. Para alguém que vivia num pequeno núcleo populacional como Valadares não havia muitas hipóteses de, nessa época, conhecer grande coisa.
Ir ao Porto era todo um programa.
Curiosamente, Valadares tem ligações à história do cinema português que poucos saberão. O primeiro cineasta português [Aurélio Paz dos Reis] tinha uma casa na praia de Valadares. Há uns dez anos soube que ainda lá estavam coisas dele mas já não fui a tempo de visitá-la; foi delapidada. E há um outro Reis (penso que sem ligação familiar) muito importante no cinema português, o António Reis, poeta e cineasta, meu professor na Escola de Cinema: quando descobrimos que éramos os dois de Valadares a ligação ficou mais forte.
Há algum trabalho nos teus 26 anos de cinema que encares como um momento-chave? Que assinale uma espécie de a.C. e d.C.?
Não. Vejo o meu percurso de uma forma evolutiva. Houve um momento com o Tabu, que ganhou o prémio no Festival de Berlim [em 2012], mas antes disso já tinha uma visibilidade bastante grande graças a outros filmes... Talvez quando começo a ter uma certa internacionalização, mas não te consigo definir um marco.
Esse apelo internacional transformou muita coisa?
Quando a escala do reconhecimento se altera as coisas mudam um bocado, inclusive em casa. Passas a ter os olhos postos no que vem de outros lugares. E isso, num país como o nosso (não é só no nosso), faz uma certa diferença. Outro momento bom foi O Fantasma do João Pedro Rodrigues passar em Veneza no ano 2000. Já tinha tido outros filmes a viajarem mas esse foi, definitivamente, um arranque para uma carreira internacional.
Quando é que as rodagens no estrangeiro começaram a tomar conta do teu tempo quase em absoluto?
Essas coisas são muito circunstanciais. Normalmente um director de fotografia, tal como a maior parte das funções no cinema, é convidado para integrar projectos já em andamento. Às vezes há conversas tipo, “Olha, estou a pensar em fazer este filme assim e assim, mas é só daqui a três anos, quatro”, mas é com base nos convites que tomamos decisões: “Neste estou interessado, neste não estou”, etc. Acontece que tenho recebido muitos convites de cinematografias da América do Sul e eles convidam bem cedo, quase a um ano de distância, e aí já fechamos datas. Depois podem vir franceses, alemães, japoneses, mas já tenho o calendário preenchido.
Depreendo que recebas mais convites internacionais do que locais.
Em Portugal produz-se muito pouco, com muita dificuldade e muito em cima da hora; o calendário de produção é bastante curto. No outro extremo tens este filme da Lucrecia Martel [Zama, com direcção de fotografia de Rui Poças, apresentado em Agosto na Bienal de Veneza], que foi preparado durante três ou quatro anos antes da rodagem, e para que fui convidado com muitíssimos meses de antecedência.
Ou seja, neste momento é possível planeares o trabalho a um prazo bastante longo.
O [director de fotografia] Eduardo Serra tinha uma carreira internacional grande, sobretudo na Europa, particularmente em França e Inglaterra, e a certa altura começou a fazer filmes nos Estados Unidos. Encontrei-o quando ele tinha acabado de fazer um dos Harry Potter e quis saber como era filmar em Hollywood. Ele contou-me que uma das coisas um pouco desagradáveis é o planeamento precisar de ser feito a tanta distância do momento da filmagem.
A que distância?
Ele tinha que fazer um planeamento da luz num papel tipo arquitectura quase um ano antes [da rodagem]. É, sobretudo, um método de trabalho mais industrial. Em Portugal e nos outros pequenos países europeus estamos habituados a fazer um cinema mais artesanal.
Vamos a uma volta comentada pelos teus projectos mais recentes. Comecemos pelo Zama, de Lucrecia Martel, que chega cá em 2018, certo?
Em Maio, acho. É uma adaptação mais ou menos livre de uma novela de renome [de Antonio di Benedetto, 1956] na Argentina. A acção decorre no século XVIII e a forma como trabalhámos passou por incorporar esse período mas dar-lhe uma característica intemporal. O principal tema dessa novela será, talvez, o tempo e a vontade de viver, a teimosia que o ser humano tem da permanência na vida. Poderia muito bem ser um filme de ficção científica; houve um momento em que chegámos a pôr a hipótese de olhar para ele dessa forma.
Antes disso, em Outubro, chega o Al Berto de Vicente Alves do Ó.
Trata de um momento em que o Al Berto deixou o exílio em Bruxelas e veio para a terra-natal, Sines, logo após o 25 de Abril. Habitualmente conhece-se o Al Berto urbano, de Lisboa, anos 80 e 90, mas este filme passa-se no momento anterior a isso. É uma história de amor em que o Al Berto se envolve com um grupo de pessoas com que cresceu e teve relações afectivas profundas antes de ir para Lisboa. A curiosidade é que, tratando-se de uma história de amor, o envolvimento que o poeta tem, biograficamente, aconteceu com o irmão do Vicente, o realizador. É um Al Berto do Verão Quente, desconhecido da maior parte das pessoas, mais diurno e alegre.
Há o Deserto do Guilherme Weber, acabado de estrear no Brasil.
É uma adaptação bastante livre de uma obra chamada Santa Maria do Circo, de um escritor mexicano, David Toscana. Uma espécie de western gótico teatral que tem Ingmar Bergman e Samuel Beckett. É um objecto muito particular do ponto de vista formal. O Guilherme investe imenso no trabalho de actor do ponto de vista teatral. Foi o primeiro filme que fiz no Brasil, há três anos e meio, mas só agora estreou.
Falta algum?
Há um filme chamado Ferrugem [de Aly Muritiba], rodado este ano [no Brasil]. Uma história de bullying entre adolescentes de 14, 15 anos. Muito interessante. Espera aí, há um outro [risos], que ganhou agora em Locarno…
As Boas Maneiras, de Marco Dutra e Juliana Rojas.
É um drama social que brinca bastante com as questões de género – género no sentido masculino/ feminino e de género cinematográfico: fantástico, terror, lobisomens e outras coisas. Passa-se numa espécie de São Paulo ficcionada e tem muitos efeitos especiais.
Há algum continente onde ainda não tenhas filmado?
Nunca trabalhei na Oceânia [risos]. A minha profissão faz-me viajar bastante, uma coisa de que não me importo nada. Nesse aspecto, e noutros, tenho bastantes privilégios. Nunca teria ido à Gronelândia se não fosse lá filmar. Há uns tempos surgiu uma oportunidade incrível, que não pude aceitar porque estava a fazer outra coisa, de ir com um astronauta russo filmar a aurora boreal numa cabana no norte da Islândia durante duas semanas. Isto é impagável.
Que local do planeta tem a luz que se dá melhor com a câmara de filmar?
Os países nórdicos têm uma luz inacreditável. Quanto mais nos aproximamos dos pólos, mais baixa é a luz e, dependendo das circunstâncias atmosféricas, elas fazem com que essa luz seja muito particular. Gosto muito da luz do norte, dos países nórdicos. Uma luz suave, mais triste, melancólica. A luz tem muita influência no meu estado de espírito. Gosto de usá-la como uma gramática, uma língua.