Conhecemos David Bruno sobretudo como produtor (do Conjunto Corona a PZ), mas nos seus discos a solo revelou ser um mirabolante contador de histórias das zonas esquecidas de Portugal. Depois de se debruçar sobre Vila Nova de Gaia, criou um álbum visual – para ver no YouTube – sobre a zona raiana da Beira Alta e Trás-os-Montes, mas dedicado a todas as aldeias do Portugal interior. Em Raiashopping, foi à terra dos avós para prestar homenagem ao Portugal dos cafés com cheirinho, dos enchidos, das festas de espuma, dos emigrantes, das tainadas e dos campeões que bebem minis no café em tronco nu nos dias de calor. Falámos com ele antes dos concertos de apresentação em Lisboa (5 de Setembro), no Porto (12 de Setembro) e em Braga (18 de Setembro).
De que forma é que a pandemia te afectou e como é que a música te ajudou nesta altura?
A minha música vive da observação de banalidades (consideradas pela maioria como tal, mas não para mim) do nosso Portugal. Fechado em casa não observo nada, por isso, em termos criativos, o isolamento resultou em criatividade nula. Deu-me, no entanto, muito tempo para trabalhar em coisas para as quais normalmente não teria tempo – tarefas menos criativas, entenda-se.
Os teus discos versam sobre universos muito particulares. Surpreendeu-te a forma como as pessoas abraçaram a tua música desde o primeiro disco?
Surpreendeu, porque nunca tive expectativas, mas fiquei muito contente por perceber que as pessoas conseguem ver a beleza dos pequenos detalhes que eu abordo no meu trabalho. Não estou sozinho e isso deixa-me muito feliz. É o triunfo do banal e do carinho pelas pequenas coisas que normalmente são ignoradas. É a prova do potencial da nossa cultura, da nossa gente, dos nossos lugares.
Tens feito discos sobre vivências e lugares que raramente têm este protagonismo. Portugal ainda tem muito por explorar através da música?
[Portugal] é uma mina de ouro, um manancial inesgotável e um dos países com gente mais carismática do mundo – apercebi-me disso quando passei cerca de ano e meio a viajar mais pelo mundo há uns anos. No entanto, eu só abordo temas dos quais tenho propriedade para falar. Mas, mesmo assim, tenho matéria-prima infinita.
Achas que a tua música tem ajudado as pessoas a conhecer melhor o seu próprio país?
Eu tinha dito antes de sair o meu último disco que, se conseguisse convencer duas ou três pessoas a olharem para as terras dos seus pais e avós de outra forma e dar-lhes vontade de lá irem, seria uma vitória pessoal e seria um homem muito feliz, e de facto tenho recebido muitas mensagens de pessoas a dizerem-me isso! Cada vez que vejo uma mensagem dessas, fico de coração cheio. O mesmo se aplica aos sítios mencionados em discos anteriores, sobre Gaia – recebo muitas fotos de pessoas que vão a esses sítios porque ouviram falar deles na minha música. Isso deixa-me muito feliz, porque é uma alegria partilhada: eu fico feliz, as pessoas que gostam de minha música ficam felizes e os donos dos locais ficam felizes. Isso é muito bonito de conseguir através de algo como a música.
Os tempos de infância que passaste na zona raiana da Beira Alta e Trás-os-Montes tiveram influência na pessoa e no artista que és hoje?
Tiveram, muita. Os beirões e os transmontanos são mais puros (menos polidos e mais transparentes, entenda-se) que as pessoas das grandes cidades do litoral. Vivem mais as suas emoções (boas e más), para além de que se nota que a sua cultura, mística, tradições e crenças vêm de muito mais de trás – há até um certo paganismo muito claro em muitas tradições do nordeste. O contacto com esta forma de estar, passada para mim pelos meus avós, formou muitos aspectos do meu carácter. O principal talvez seja o folclore e o gosto por contar histórias às outras pessoas. Afinal de contas, é disso de que a minha música trata: contar histórias. Tenho saudades das horas que passei à lareira a ouvir superstições, lendas e histórias, sempre as mesmas – na altura até me fartava, mas hoje tenho saudade. E apercebendo-me da sorte que tive ao receber esse legado, espero poder ter hipótese de perpetuá-lo noutros contextos e ter a sorte de ter pessoas a ouvirem-me.
Como é que encaras os avanços do fascismo em Portugal? Tens receio que o teu amor ao povo e à cultura portuguesa possa ser confundido com essas ideologias?
Tenho muito receio e já fiz questão de distanciar a minha defesa da portugalidade dessa portugalidade – que, para dizer a verdade, me dá asco. Eu não defendo o país em si, nem os portugueses numa lógica de raça, superioridade ou algo do género. Eu defendo o nosso carisma, até os nossos pequenos defeitos, pormenores “micro” da nossa cultura, e para mim esses movimentos nada têm a ver com a maioria dos portugueses nem com a cultura que acabei de referir. Acho que genuinamente o povo português pode até ter por vezes mau feitio, ser fanfarrão, inapropriado, até mesmo “cringe”, mas acredito que a grande maioria de nós tem um bom coração. Retenho, como exemplos, o piloto Mário Patrão, que no Paris Dakar desistiu de uma prova para dar apoio a um piloto holandês que tinha tido um acidente e estava caído, tendo já vários pilotos passado por ele e ignorado a situação. Ou Carlos Pinto, o enfermeiro português que ficou para trás para socorrer as vítimas de esfaqueamento no atentado em Londres há uns anos. Ou o Soldado Milhões. Ou o Aristides de Sousa Mendes. Enfim. Aposto que todos eles se fartaram de dizer mal da vida e uns poucos de palavrões, reclamaram, disseram que os outros é que eram espertos por ter ignorado e pensado em si, mas foram bons e altruístas para os outros. Para mim, isto é ser português e é disto que eu me orgulho. Do Jorge Jesus, das conferências de imprensa do Carlos Carvalhal na Inglaterra. Esta “boa” portugalidade sente-se e dá para apalpar o amor, o carinho, a bondade destas pessoas e dos seus actos. Tenho muito orgulho nisto e espero que meia dúzia de pessoas não o estraguem.