Há um manto de tristeza na música de Francisca Cortesão. Um tumulto interior mascarado de uma sensação de calma, mas também um véu de esperança que a leva a tentar fazer as pazes consigo própria. “Eu projecto isso naturalmente, mas se calhar não sou assim tão calma", conta Francisca ao telefone, entre risos. “Acho que sempre dei essa impressão, mesmo quando não é propriamente isso que está a acontecer. Não sou muito dada a explosões, mas acho que às vezes me faz falta.” O novo disco Demolition Derby, o quarto que assina com o projecto Minta & The Brook Trout, divide-se entre observações sobre o mundo e ruminações internas.
“Há uma metade de músicas em que sou eu a falar do ponto de vista de quem está a olhar para fora e depois outras a tentar lidar com a minha própria tristeza”, explica. “Houve assim uma crise pessoal – não muito grave, ninguém morreu. O fim de uma relação. Eu sempre fiz isso, escrever, desde miúda que era um sítio onde eu ia pensar. Às vezes escrevo coisas só para tentar fazer sentido do que aconteceu e não é necessariamente uma música para mais ninguém ouvir. Mas gosto de ouvir essas músicas das outras pessoas, em que elas estão a escarafunchar nos seus sentimentos e a tentar chegar a algum lado. Eu não sou de ficar a chafurdar na tristeza ou na raiva, não tiro grande prazer disso. Estou sempre a fazer um esforço de chegar à boa-disposição, mas sempre a dar trambolhões.” E acrescenta, falando consigo própria, mas também com todos nós: “Não tenhas tanta pressa de ficar bem-disposta, também tens que sentir o que estás a sentir”.
Francisca Cortesão é uma das melhores escritoras de canções deste país. Não é exagero: as suas preciosas palavras são escolhidas com pinças. Este é o disco em que as letras ganham mais texto, mas não perdem o poder da simplicidade e da depuração. A voz serena comanda a atenção, convida a saborear sem pressa as palavras e melodias. “Sempre fui muito sintética a escrever, mas à medida que o tempo passa comecei a ser mais exigente com o que escrevo. Há músicas mais compridas, relaxámos nesse aspecto, deixámos andar, e se calhar também me deixei falar um bocado mais porque estava a precisar.”
Já escreveu em português para nomes como Ana Bacalhau, Cristina Branco e Joana Barra Vaz, mas com Minta sempre adoptou o inglês. Poucos projectos em Portugal fazem tanto sentido desta forma. Poucos o fazem com tanta propriedade e são raros os que dominam a língua como ela, de forma tão cintilante, com um humor espirituoso, espraiada na paisagem da Americana. “Minta, em particular, com a sonoridade e o universo que tem, não me faz sentido que seja de outra forma. Este projecto tem uma identidade muito própria desde o início, e foi ficando cada vez mais definida, foi afunilando, e para mim já é muito claro o que pertence nas letras, instrumentação e em termos visuais. Não cabem lá músicas em português.”
Quando, há 15 anos, criou este projecto, não tinha propriamente “nada em mente”. “O que acabou por ser a melhor maneira de começar. Fazia músicas em casa, divertia-me a fazer maquetes, a fazer arranjos, isso acabou por ser a génese de Minta. Nunca houve um plano, nunca houve uma ambição. Nunca tive muito tempo para pensar... Ou muita vontade [risos]. Tenho tido a sorte de ter músicos muito diferentes uns dos outros, mas todos generosos a tocar comigo ao longo dos anos.” Em Demolition Derby, teve ao seu lado Mariana Ricardo (baixo), com quem produziu o disco, e ainda Margarida Campelo (piano, sintetizador) e Tomás Sousa (bateria). A nível instrumental, é o álbum em que arriscam mais. “Há músicas com muitos teclados, coisas processadas como vocoder, há um pouco mais de sujidade. Estou muito contente com o que temos feito. E entusiasmada, apesar de algum receio.”
Este receio vem da dificuldade de marcar uma digressão e de conseguir perspectivar o futuro. Para já, há um concerto agendado para 24 de Maio, no Teatro Maria Matos. “Confesso que tenho alguma dificuldade em pensar nisso. Já tive tantos concertos adiados ao longo do último ano que tenho medo que não venha a concretizar-se. Oxalá que sim.” Até porque a "parte mais divertida” vem agora, ao transpor estas canções para o palco. No disco anterior tocavam com Bruno Pernadas, que saiu para se ocupar com outros projectos e um álbum que está prestes a sair – “e eu também faço parte dele, isto é uma pescadinha de rabo na boca”, ri-se. Para os concertos, vão agora contar com Afonso Cabral (You Can't Win, Charlie Brown). “Vamos descobrir como tocar as músicas deste disco e dos outros e adaptá-las a esta formação, que vai ter mais teclados. E tenho uma banda em que toda a gente canta muitíssimo bem, isso é um sonho.”
O grande prazer de fazer música vem de tocar com outras pessoas, e ela sabe rodear-se de talentosos músicos, que engrandecem a música que brota dela. “A banda dá corpo às canções, mesmo quando os arranjos já estão meio definidos nas maquetes. Eu faço as músicas, mas a partir daí elas podiam ser deles, só me interessa que cheguem à melhor forma possível, está tudo em aberto.” Uma canção como “The Fake Outdoors” é um bom exemplo disso. “Tem um padrão de bateria que eu nunca me lembraria, tem uma ginga muito própria do Tomás e tem um espaço mais free do piano eléctrico da Margarida, que à partida não diria que é daquela música. Mas é. De alguma forma, criei espaço para que aquilo acontecesse, mas aquilo nunca poderia ter vindo da minha cabeça. Isso é um dos grandes privilégios de fazer música.” ■