Em 2012, Luca Argel trocou o Rio de Janeiro pelo Porto, onde tem abraçado o samba como fonte de prazer mas também de estudo da história política do Brasil. Samba de Guerrilha é um projecto que começou em 2016 como um concerto-workshop, tomou a forma de artigos, seminários e programas de rádio, até se transformar no seu quarto álbum, o primeiro de versões. Neste disco, editado em formato de jornal ilustrado, Luca Argel mostra as histórias e os protagonistas do combate ao racismo, à escravatura e às desigualdades no Brasil.
Porque é que era importante que este disco fosse feito de versões de sambas históricos, em vez de ser cantado nas tuas palavras?
Por dois motivos que têm que ver com o conceito do Samba de Guerrilha. Primeiro, a vontade que atravessa todo o disco de "subverter" o samba musicalmente, com arranjos e formações pouco convencionais. Se fossem temas autorais, inéditos, essa abordagem não ficaria tão evidente quanto o pegar em temas que já existem, já foram gravados e regravados, e torcê-los à minha maneira. É mais fácil criar contraste quando já temos pontos de referência bem estabelecidos – neste caso, o repertório. O segundo motivo é o reforço do viés de pesquisa histórica, quase documental, do disco. Muitos dos sambistas que eu canto ali testemunharam na primeira pessoa a história contada, foram participantes directos dela. Trazer à frente as palavras dos próprios personagens da história, contá-la a partir das palavras deles, dá uma força muito maior à narrativa.
O que te levou a escolher a Telma Tvon como narradora deste trabalho?
A Telma é uma artista de uma força gigantesca, mas um pouco avessa aos holofotes, para o nosso azar. Identifiquei-me muito com ela quando a conheci, tanto ideologicamente, quanto pela posição de autora com um pé na literatura e outro na música. Uma das minhas vontades no Samba de Guerrilha era criar alguns pontos de diálogo com o hip-hop, que talvez ocupe hoje o lugar de popularidade e afirmação da identidade negra que no passado o samba ocupou no Brasil – tanto que, para além da Telma, tenho mais outros dois convidados que vêm do universo do hip-hop, o Frankão e o Vinicius Terra. Quem tiver curiosidade, que procure na Internet algum vídeo da Telma rappando. É uma voz muito impactante, expressiva, representativa, ideal para assumir essa função de "guia" pela jornada que é o disco.
Muito do samba que foi chegando a Portugal tinha uma aparência mais festiva, branqueada, estereotipada, exótica. Hoje em dia o samba está presente na música portuguesa, em desfiles de Carnaval, o que pode levantar questões de apropriação cultural. Que cuidado deve haver da parte de quem está a tocar samba fora do seu contexto original?
Uma vez fiz um workshop do Samba de Guerrilha para um grupo de franceses que têm um grupo de samba em Toulouse, e um deles me colocou exactamente esta pergunta, questionando a própria legitimidade da actividade deles. A apropriação cultural é uma coisa muito capciosa quando falamos de arte. Porque um ambiente de criação artística vivo e pujante é impensável sem que possamos nos apropriar de elementos externos, inseri-los em novos contextos, adaptá-los, misturá-los com outros de origem completamente diferente... A fronteira para mim do que é ou não "apropriável", e como, está em dois factores: respeito e informação. E foi mais ou menos isso que respondi ao rapaz francês. Estando com eles, pude ver a relação que eles tinham com o samba, e via esse respeito na forma como se interessavam em aprender não só a tocar, mas a conhecer a origem daquelas músicas, quem eram seus autores, de onde vinham, em que época viveram, e sobretudo o que o samba simboliza dentro do seu "habitat" natural. Também vi esse mesmo respeito nas escolas de samba que já visitei aqui em Portugal. Se quer saber, vi respeito até demais! Porque conhecer bem o samba não precisa necessariamente implicar que se faça samba exactamente como reza a tradição. Prefiro um português ou um francês ou um japonês se apropriando e fazendo um samba "contaminado", à sua própria maneira, do que tentando reproduzir uma cópia exacta da forma como ele é feito no Brasil.
Ouvir este disco é também perceber a capacidade de resistência e de resiliência de um povo que foi privado da sua liberdade e dignidade, de um povo a quem tentaram proibir os seus sonhos e até os seus sambas. De onde veio toda essa força para resistir e denunciar, de forma a que as suas vozes chegaram até aos nossos dias?
Aí está uma grande lição que o samba nos dá, provavelmente a maior de todas: como driblar a adversidade, como sobreviver na mais profunda precariedade. E a resposta é visível em qualquer roda de samba. Como os sambistas se colocam para tocar? O próprio nome já diz, em roda, no centro do espaço, olhando uns para os outros, e com todo o povo à volta, espalhado por todos os lados. Não há primeira nem última fila, e nem cadeira para todo mundo. O espaço é aberto e a circulação é livre – até porque não há roda de samba que se preze sem que haja um constante ir e vir de comidas e bebidas. O que isto tudo quer dizer é que na prática o samba foi inventado para proporcionar um momento agradável de convívio entre a comunidade. Convívio que tem como finalidade estreitar laços e fortalecer a coesão social do grupo, porque ninguém é capaz de resistir sozinho às privações a que aquelas pessoas foram submetidas. Foi colectivamente que os escravizados resistiram e criaram seus quilombos, e é colectivamente que os seus descendentes resistem até hoje às violências que uma sociedade moldada pelo pensamento racista e escravocrata lhes impõem. A força vem da colectividade.
A sabedoria ancestral do samba tem muito a ensinar aos portugueses, muito mais do que aquilo que vem nos livros de escola. Ao contrário, por exemplo, da Alemanha, que não esconde as atrocidades cometidas na sua história, Portugal nunca conseguiu reconhecer os efeitos reais da invasão e colonização do Brasil, procurando embelezar esse passado. A que se deve isto?
Há um ano eu teria algum receio de responder a esta pergunta, porque era apenas um brasileiro a viver em Portugal, e existe aquela regra de etiqueta segundo a qual só a gente pode falar mal do nosso país, os estrangeiros não. Hoje, como já sou enfim um cidadão português, me sinto oficialmente habilitado a falar mal de Portugal e posso responder com mais à vontade. Ou nem tanto, porque a questão é muito complexa, capaz de encher um livro inteiro – como é aliás o caso de um que terminei há não muito tempo, O Labirinto da Saudade, do Eduardo Lourenço, que em certa altura se coloca exactamente a mesma pergunta. Confiando que Eduardo Lourenço foi um pensador muito mais habilitado do que eu para respondê-la, posso tentar traduzir o que aprendi com ele, e que corrobora uma impressão que eu já tinha sobre uma patologia de que Portugal sofre, e que deve ser transmitida geneticamente, porque no Brasil também sofremos dela. Lá nós chamamos de "síndrome de vira-lata". É aquilo de achar que tudo o que vem do estrangeiro é melhor do que o nacional. Que bom mesmo é o que está lá fora, aqui dentro é tudo mau. Só que Portugal, talvez por ser um país mais pequeno e isolado do que o Brasil, parece ter desenvolvido um estágio ainda mais avançado desta síndrome, em que tenta compensar a terrível pequenez e insignificância que acredita possuir, criando a imagem de um passado majestoso e irrepreensível. E qualquer tentativa de olhar crítico para este passado é tratada como um ataque vil à honra nacional. É um bocado patético ver, como já vi, senhores bem educados (são sempre senhores e são sempre brancos) a se esforçar imenso para "dourar a pílula" do colonialismo português com os velhos argumentos do "mas Espanha fez pior", ou "mas os Africanos também escravizavam-se", e coisas do tipo, como crianças fazendo beicinho para escapar do castigo. A postura oficial de Portugal com relação ao seu próprio passado é de uma imaturidade comovente. A boa notícia é que esta síndrome é perfeitamente curável, com cultura e educação. Agora, com Portugáis dos Pequenitos e Museus dos "Descobrimentos" é que não vamos mesmo lá.
A ascensão da extrema-direita em Portugal parece espelhar os primórdios do que aconteceu em países como o Brasil ou os Estados Unidos. Como é que Portugal pode evitar que as coisas cheguem a esse ponto?
Quem me dera ter essa resposta! Acho que não há uma fórmula, e me pergunto até se esta onda de retrocesso civilizacional é mesmo evitável. De uma coisa tenho certeza: ela vai passar. Enquanto isso, é fazer uma barragem para conter os danos. Isto é: sermos vocais na denúncia contra as desigualdades, as violências, e discriminações; contrapor as mentiras com factos; não ser sectários e ostracizar possíveis aliados simplesmente porque não concordamos em tudo; disputar consciências fora da nossa bolha, com paciência e pedagogia; colocar em prática, no dia-a-dia, os valores de solidariedade em que acreditamos... Será isso suficiente? Pode ser que não. Mas que essa sombra do fascismo não nos paralise. Como diz o mestre Miyagi, é melhor perder para o nosso inimigo do que perder para o medo dele.
Qual foi o maior desafio ao fazer um disco com este peso histórico?
Condensar séculos de história e um repertório vastíssimo num espaço muito restrito. Seleccionar o que é imprescindível e o que deixar de fora, foi o mais difícil.
Que outros sambas recomendas, como complemento a este disco?
Tenho toda uma playlist! Nela estão, por exemplo: "Comunidade Carente" de Zeca Pagodinho, "Dia de Graça" de Candeia, "Opinião" de Zé Keti, "Zé do Caroço" de Leci Brandão, "Alerta Geral" de Alcione, "Kizomba" de Luiz Carlos da Vila, e mais umas dezenas de outros... É samba que não acaba mais. ■