Música, Brasileira, Samba, Luca Argel
©João SaramagoLuca Argel
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Luca Argel “O samba tem dentro dele todas as tensões que existem na sociedade brasileira"

O cantautor carioca Luca Argel vive há sete anos no Porto, onde tem abraçado o samba como fonte de prazer e de estudo da história do Brasil. Fomos ouvi-lo a propósito do seu novo álbum a solo, "Conversa de Fila", que apresenta dia 6 na Casa da Música

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Luca Argel deixou o Rio de Janeiro em 2012. Logo que chegou ao Porto, começou pela primeira vez a participar como músico em rodas de samba. Integra colectivos como o Samba Sem Fronteiras e Bamba Social, escreve livros de poesia e estuda, divulga e cria samba. Este mês edita o novo álbum a solo, Conversa de Fila, e apresenta-o na Casa da Música.

Entraste no samba ao sair do Brasil.

Pois é. Fazer samba longe da fonte dá uma perspectiva que eu jamais teria se estivesse lá convivendo com um meio que já tem as suas tradições. Aqui era um campo pouco explorado.

Eras mais livre aqui?

Sim, estava livre de olhares especializados, podia criar o meu cânone pessoal e a minha identidade. É muito mais difícil escrever perto da tradição do que longe. Eu, que nunca fui do meio do samba, acabei caindo nele de uma forma muito livre, muito pouco comprometida com os padrões estabelecidos.

Porquê o samba?

O primeiro trabalho autoral em que toco samba é o Bandeira, de 2017. Senti a necessidade de o entender mais. Deparei-me com os textos do historiador Luiz Antônio Simas e comecei a perceber como o samba é representativo da identidade brasileira e da história política do Brasil. Como o samba tem dentro dele todas as tensões que existem na sociedade brasileira, todos os problemas e todas as coisas bonitas. E isso tornou-o muito mais do que um género musical. Tornou-o uma bandeira, que representa algo muito maior do que ele próprio.

Para conhecer o Brasil é melhor ouvir samba do que ouvir as notícias…

Pois é, até porque quem fala no samba são as pessoas que sofrem as consequências, estão contando a história em primeira mão. São as vozes que não saem nos jornais e narram sem intermediários. Eu demorei algum tempo para amadurecer essa ideia do que é o samba, da potência que pode ter. Este novo disco é completamente mergulhado no samba.

Que é um samba feito fora do Brasil, com vivências de fora do Brasil.

E não poderia ter sido feito no Brasil. Quando estou a escrever uma música e sei que tenho um público português, vou tentar usar um léxico mais universal. É uma das missões que assumo, fazer uma aproximação entre Portugal e o Brasil, tentar gerar um interesse maior nos brasileiros pela cultura portuguesa, porque ao contrário acho que já existe. Talvez o que falta é um conhecimento um pouco mais profundo.

Da história do Brasil, da presença de Portugal no Brasil...

Sim. É uma questão que eu ainda não levantei no meu trabalho. Na verdade, eu fui um pouco atropelado pela política, porque já tinha planeado o Conversa de Fila há bastante tempo e sabia que ia ser um disco muito leve, humorístico e alegre. E quando o disco ficou pronto acontece a eleição de Bolsonaro. Não tinha como voltar atrás e fazer outro.

Acaba por ser uma boa reacção ao que aconteceu: rir para não chorar.

O riso e a alegria são muito mais revolucionários. A tristeza e o medo paralisam. O riso tem mais potência, energiza. Se calhar isso é uma coisa que a gente precisa mais agora. Mas eu tenho planos de tentar juntar o samba com problemas políticos de Portugal e do Brasil, porque tudo isso tem uma origem comum que é a escravidão. Eu tendo a enxergar esse governo como um processo pelo qual o país em algum momento ia precisar de passar. E acho que é um processo que Portugal em algum momento vai também precisar de passar. Os países têm traumas que não são resolvidos, continuam lidando com negação ou com violência e não se quer assumir a origem real dela.

Como o que aconteceu no Bairro da Jamaica.

Exactamente. Aqui em Portugal tem essas explosões de racismo e depois vai tudo voltando à realidade como se fosse um caso isolado. Mas continua fervendo a panela. No Brasil, a dinâmica é pior, é mais sistemática.

Surpreendeu-te saber que a maioria dos brasileiros em Portugal apoia Bolsonaro?

Não. Existe uma classe que compra as teses do bolsonarismo, que são baseadas em falsidades históricas. Pessoas que partem do pressuposto de que toda a gente nasce com oportunidades iguais. Têm dificuldade de enxergar os seus privilégios e de sentir empatia com o outro.

Tens esperança no Brasil?

Eu sei que vão acontecer coisas muito, muito ruins. Eu tenho esperança, mas é muito a longo prazo. Bolsonaro é eleito com um discurso muito violento e de repente começam a acontecer tragédias atrás de tragédias. É uma onda de má energia que vai acabar quando tiver que acabar. A minha esperança é que a gente consiga tirar alguma lição dela, sair dela como melhores pessoas, como uma sociedade melhor. Mas vai demorar. Não sei se vamos conseguir estar vivos para assistir.

Como é viver isso deste lado?

Quando Bolsonaro assinou o decreto que facilitou a posse de armas de fogo, senti muito receio pela vida da minha família e amigos. Mas existe uma margem de luta e de militância que pode ser feita a partir daqui e que é muito importante. Principalmente a partir de Portugal. Se por acaso alguma autoridade em Portugal pedisse desculpas...

E era o mínimo...

E era o mínimo. Se o governo português oficialmente pedir desculpas pela escravidão, o Brasil estaria numa posição de fazer essa reflexão também. Porque se Portugal pedir desculpas é porque existiu alguma injustiça histórica. Está o mundo todo a reconhecer que aconteceu alguma coisa de muito errado e Portugal não fala nada. Esse é um sonho que eu tenho, o presidente pedir desculpas pela escravidão.

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