As canções de Miguel Araújo resistem à erosão dos tempos e tempestades. Entre guitarras eléctricas e acústicas, ukelele, baixo, contrabaixo, teclados, harmónio, percussões ou trompete, o músico maiato multiplicou as mãos para criar arranjos que cintilam em pequenas sinfonias. A produção privilegia o sopro do coração, a vibração das cordas, o calor humano, o mel da voz. As letras de milimétrica minúcia brincam com a língua portuguesa em contos e crónicas dos costumes. Na monotonia dos dias, a sua criatividade flui e floresce. Entre serenatas, cantigas de amor, canções de embalar e músicas que poderiam ser livros, canta a gente que faz o mundo avançar – as avós que cosem as meias dos netos, as meninas que cantam Lena d'Água ao espelho, as raparigas que lêem Balzac e Émile Zola, os rapazes que tocam ukulele e dançam funaná. Miguel Araújo vai à alma das coisas, num albergue aberto à humanidade e mundanidade das coisas simples. As suas canções lembram que as pessoas são o cimento da vida.
Os meses de confinamento proporcionaram a Miguel Araújo um nível de produtividade notável. Quando a pandemia abalou o país, protagonizou os concertos mais ternurentos da quarentena – todas as noites, transmitia em directo o momento em que cantava para ajudar a filha a adormecer. Mais recentemente, lançou uma série de episódios gravados no seu estúdio, sozinho com uma guitarra a percorrer as suas grandes referências (The Beatles, Rui Veloso, Bob Dylan, Paul Simon, Mark Knopfler).
Passou mais tempo com a família e com os seus pensamentos e descobriu que os concertos não lhe são tão vitais. Com um estúdio na cave da sua casa, no Porto, continuou a trabalhar diariamente. Criou música para séries e novelas e foi lançando canções de forma avulsa – algumas, como “Fado do diz-que-disse”, “Serenata do Norte” e “A Incrível História de Gabriela de Jesus”, acabariam por entrar no novo disco, Peixe Azul. Assumindo a sua independência, tomou conta de tudo, desde o esboço de uma canção à sua partilha com o público. O quarto álbum de originais a solo é um disco de um homem só, integralmente composto, cantado, tocado, gravado, produzido e misturado no seu estúdio, entre Janeiro de 2019 e Outubro de 2020. Está disponível em CD para venda online desde 18 de Janeiro, mas só chegará às plataformas de streaming em Março.
Este disco foi lançado de surpresa e, por enquanto, apenas em CD. O que te levou a fazer as coisas de forma tão calma e caseira?
O facto de eu ter investido num estúdio em casa – não necessariamente "caseiro", mas em casa – proporcionou algo de novo e muito bem-vindo na minha vida, no meu dia-a-dia: o poder trabalhar continuada e consistentemente na minha música. Não só na escrita e composição, mas também no registo final, oficial, "na pedra", das minhas canções. Quando apareceu a pandemia, eu já estava lançado nessa rotina diária. Fui constatando que talvez estivesse perante um disco, contrariando tudo o que eu tinha pensado. Como não podia ter ninguém comigo, fiz dessa limitação um recurso valioso e apliquei-me a produzir, fazer os arranjos, tocar os instrumentos todos... Por vezes a abundância de recursos limita e, pelas mesmas razões, as limitações abrem possibilidades. Neste caso, foi isso que aconteceu.
Porquê lançar em CD antes do streaming?
Lancei o disco em CD, apesar de saber que enquanto suporte de música está descontinuado, longe de ser o standard, a norma. Mas ainda tem um certo valor. É uma peça de merchandising que muita gente preza, e é uma forma de as pessoas que gostam de me ouvir contribuírem financeiramente para que eu ainda cá ande quando isto tudo passar e a fonte de rendimento normal volte a ser uma possibilidade. Foi incrível, nas primeiras 24 horas vendi quase 300 CDs. A generosidade das pessoas não tem fim, fiquei muito comovido. Houve um senhor que comprou o CD mas mandou mensagem a perguntar se eu lhe podia enviar os ficheiros porque nem sequer tem leitor de CDs.
Trabalhas de forma independente – és o dono da tua música, tens o teu próprio estúdio, tocas todos os instrumentos. Ter tanta liberdade parece aliciante. Existe um lado menos bom nisso tudo?
Assim de repente, não me ocorre nenhum. Claro que deixei de fazer parte da engrenagem, da grande indústria, digamos assim. Mas isso não me causa dano, antes pelo contrário. Eu gosto de fazer as coisas de forma independente, entretenho-me. Pareço puto outra vez, a montar a loja online, enfiar os CDs nos envelopes, fazer eu a capa, por aí fora. Lembra-me os primórdios d’Os Azeitonas, que foram uma excelente escola da filosofia Do It Yourself. Mas hoje em dia tenho outra facilidade, posso fazer colaborações, e faço isso também. Já ando a gravar o meu próximo disco e estou a trabalhar com um produtor, o João André, num processo bastante diferente. Desse próximo disco já saíram duas músicas: “Talvez se eu dançasse” e “Dia da Procissão”. Esta liberdade de fazer tudo sozinho é porreira porque posso sempre abdicar dela.
Este disco foi masterizado pelo veterano Bernie Grundman. O que te levou até ele?
Ele masterizou um disco cujo som eu adoro: In Between Dreams do Jack Johnson. É impressionante, de tão natural, esse som. Era isso que eu queria para estas canções. Estou muito, muito contente com o som natural deste Peixe Azul.
As tuas letras são sobretudo sobre pessoas e personagens, mas raramente escreves sobre ti. É uma forma de te protegeres ou esconderes? Ou acabas por revelar muito sobre ti próprio mesmo quando escreves sobre outras pessoas?
Acaba por ser tudo sobre mim, sempre, de certa maneira. Sou sempre eu. Mas não literalmente. Ser literal não me interessa, evito isso. Mas não me escondo de nada. Isso ficou para trás a partir do momento em que decidi que ia publicar as minhas canções. Ou se é sincero, ou então é para esquecer.
O disco termina com uma canção (“Ainda Estamos Aqui”) que já tem alguns anos, mas funciona como farol para estes tempos. Onde encontras esse optimismo nesta altura?
Apesar de já ser de 2018, foi a primeira canção que eu gravei no meu estúdio e foi gravada num esquema muito semelhante a todas as outras. Por isso a incluí. O meu optimismo é meio crónico, não tenho outra maneira de olhar para as coisas. Existe sempre uma providência qualquer que faz com que as coisas melhorem sempre. Tudo é passageiro, a impermanência de tudo é a única coisa que permanece. E as movimentações do mundo são sempre generosas, regeneradoras, reparadoras, recicladoras. Para mim isso é mais ou menos inegável.
O que é que descobriste sobre ti próprio durante estes meses?
Acho que descobri que não quero voltar a dar 90 ou 100 concertos num ano. Já não tenho essa vontade. Vou passar a dar menos concertos. ■