três tristes tigres
© DRAlexandre Soares e Ana Deus estão de volta aos discos
© DR

Entrevista: Três Tristes Tigres, o regresso da banda portuense

A que é que soam os Três Tristes Tigres em 2020? Alexandre Soares e Ana Deus passaram os últimos anos a tentar descobrir. Falámos com eles.

Publicidade

A que é que soam os Três Tristes Tigres em 2020? Alexandre Soares e Ana Deus passaram os últimos anos a tentar descobrir. O resultado é Mínima Luz, o álbum que será editado no dia 1 de Maio e que é um dos regressos mais aguardados do ano. Falámos com a dupla portuense no estúdio da Sonoscopia, antes da quarentena, quando ainda estavam a terminar o disco. Depois do adiamento da sua edição, o álbum vê finalmente a (mínima) luz do dia e já está disponível em formato digital, em CD e brevemente em vinil. Pode ser encomendado através do email correiodostigres@gmail.com.

Recomendado: Leia aqui a edição desta semana da Time In Portugal

Entrevista: Três Tristes Tigres

No meio de um emaranhado de cabos coloridos,  Alexandre Soares abre as portas ao caos controlado do seu estúdio na Sonoscopia. Embrenhado entre sintetizadores, samplers, guitarras, pedais, colunas e computadores, tem ao seu lado Ana Deus. Estes dois nomes históricos da música portuguesa, um ex-GNR e uma ex-Ban, cruzaram-se pela primeira vez nos Três Tristes Tigres.

Nos anos 90, numa época em que a música portuguesa parecia perdida a contemplar o passado e a traduzir o que vinha lá de fora, foram visionários na forma como dosearam a eloquência poética de Regina Guimarães (o terceiro tigre) entre guitarras e programações. A colectânea Visita de Estudo (2001) foi o ponto final. Desde então, continuaram ligados à música e aos cruzamentos desta com a dança, o teatro, o cinema e a poesia. Em 2010, Ana e Alexandre reencontraram-se em Osso Vaidoso. O prazer que ela tinha em trabalhar mais as palavras conjurou um som mais cru, com rédea solta sobre as galáxias da guitarra dele.

Em 2017, o passado dos Três Tristes Tigres, que já soava a futuro, encaixou maravilhosamente no presente. Voltaram a assumir o nome para uma série de concertos, até que chegou a altura de fazer música nova. “Quando mexemos nas músicas antigas, elas começaram logo a mudar e a ficar mais próximas do que somos hoje”, conta Alexandre. Procuraram “um som maior, com mais coisas, a abrir outra vez a electrónica”. “Quisemos encontrar um som que fizesse sentido para nós agora, para não ir buscar o que o grupo antigo já fez. Começámos completamente do zero.”

O resultado foi Mínima Luz, o primeiro álbum de música original dos Três Tristes Tigres desde 1998, que será editado este ano. Um rock mais rugido e delirante, contaminado com circuitos electrónicos, e outros temas mais ambientais e lentos.  Para chegar aqui, foram importantes as pessoas e as máquinas. Alexandre aponta, entusiasmado, para um sampler granular: “Aquilo disseca-te o som. Podes arranjar um grãozinho, uma parcela mínima, e a partir disso reconstróis um som grande.” Ao lado, estão os sintetizadores modulares. “São bastante instáveis, com eles consegues desenhar um som único porque interagem uns com os outros. Consegues criar os sons que tens na tua cabeça.”

Este som mais cheio vem também das mãos de convidados, como o baterista Fred Ferreira, o baixista Rui Martelo, o percussionista Gustavo Costa e a harpista Angélica Salvi. Nas letras há traduções adaptadas de poemas de William Blake e Langston Hughes, cinco poemas originais de Regina Guimarães e um de Luca Argel. A estes autores, Ana Deus sugeriu “algo próximo da profecia, de desejos que convocam forças”. “Imaginei como a palavra é um princípio de muita coisa; é o princípio do pensamento, do desejo. Acredito na transformação de que o que pensas e desejas pode acontecer”, explica. “Mas não é tão simples quanto o pensamento positivo, tem a ver com não replicar as desgraças do dia-a-dia. Há pessoas que estão fechadas nos conventos a rezar pelo bem do mundo e... Aquilo fará sentido? Se calhar faz, para eles, mas para mim faz sentido uma mínima luz de vontade, de desejo.”

Ana destaca a letra de “Língua Franca”, onde pediu a Regina Guimarães para imaginar que “todos os seres se falavam e entendiam”. Deus sonhou, Regina escreveu e a obra nasceu. “Estamos a ficar um bocado divorciados do natural. Tenho a convicção e a fé de que somos todos muito mais próximos do que achamos, desde o vegetal ao mineral, apesar de estarmos em estádios muito diferentes e de nos acharmos superiores.” Também há uma letra sua. “Esforço-me sempre para tentar escrever uma letra por disco. Esta fala de um universo sem dor. Gostei de cantar uma coisa mais surrealista porque posso ser surpreendida por outros sentidos. Pode ser que tenha relações plásticas e elásticas, e consiga ir sentindo coisas diferentes à medida que a canto”, conta.

Há um ponto no processo de criação em que os Tigres divergem. Ana gostava de trabalhar mais as gravações vocais, Alexandre prefere o risco, a tensão e a captura de um instante. “Sou uma pessoa naturalmente insatisfeita”, diz ele. “Ponho muito em dúvida as coisas, gosto de experimentar, deito muitas coisas fora e depois tenho que as recuperar. Mas eu gosto desta vida de composição e de tocar. Venho para aqui todos os dias, gosto do que faço.”

“Antes era muito mais despreocupada e, nesse sentido, mais livre”, refere Ana Deus. “Cada vez se dá mais atenção ao que se escreve e ao que se transmite. A minha autocensura aumentou. A idade tem esse peso.” Apesar disso, com o passar dos anos ela ganhou uma nova liberdade através da voz. “Perdi um bocado o medo. Os concertos dos Tigres tinham uma densidade sonora muito forte, mas acho que já tenho mais arcaboiço. Tornei-me mais competente porque ganhei a liberdade de me separar do que estava gravado, portanto é mais confortável para mim cantar agora”, assume. “Com esse desprendimento vou percebendo melhor como fazer as coisas como eu quero, como me servem melhor.”

Mesmo quando olham para trás, os Três Tristes Tigres nunca vivem debruçados sobre o passado. Sempre se situaram uns passos à frente do seu tempo. É aí que os continuaremos a encontrar, à procura da satisfação na permanente insatisfação.

Crítica

Três Tristes Tigres - Mínima Luz

  • 5/5 estrelas
  • Recomendado

Os melhores músicos são assim. Amadurecem, mantêm na memória o seu papel pioneiro, mas reinventam-se ainda mais livres. Ana Deus é lânguida e sanguínea, bruta e carnívora. No mel de uma melodia ou dela blindada, é sinuosa e surrealista. O seu poder interpretativo vai da ternura à violência, emociona e magoa. Alexandre Soares ergue sumptuosos muros à sua volta, forjados a ferro e fogo, entre os trilhos transviados da música eléctrica e electrónica. Trabalha os timbres e estraçalha sons de sintetizadores, samplers e guitarras vulcânicas. Mínima Luz suspende o tempo e transcende-o, com um conjunto de canções imaculadas, de uma visceralidade e uma urgência que não compactuam com o passado. É um som avassalador, a labareda da liberdade de dois génios que nunca foram suficientemente celebrados e que marcaram para sempre a história da música portuguesa. ■ Ana Patrícia Silva

Mais entrevistas:

  • Música
Há uma música em que dizes para aproveitarmos este disco porque pode ser o último… Isso tem a ver com o facto de os discos estarem a morrer. É um bocado ingrato fazer maratonas de dois ou três anos de trabalho para depois aquilo ser consumido na voragem da novidade. Tens que competir no meio do ruído das redes sociais, numa arena de vaidades, com o que te é mais especial e precioso. Será que vale a pena? Se puser uma foto do meu almoço ou do meu bebé, tenho mais likes do que com a música que fiz com as minhas emoções e pensamentos. Vês muitos músicos com problemas de depressão e suicídio porque é muito ingrato teres que “vender” a tua arte num mercado em que se vende de tudo. É um bocado perverso, parece que tens de perder a tua privacidade para ganhar a atenção das pessoas. Já tens mais de 15 anos de carreira. Achas que tens tido o reconhecimento devido? Por um lado sim, por outro não sei. Muitas pessoas começaram a ouvir hip-hop porque a minha música chegou a públicos diferentes. Ter pessoas de diferentes gerações nos meus concertos foi uma prova de que consegui essa transversalidade. Mas dentro do Capicua acaba de editar ‘Madrepérola’, um disco que explora um lado mais solar e que coincidiu com a sua primeira gravidez. Ana Patrícia Silva conversou com ela sobre ser mãe, mulher e rapper num mundo pouco amigo das mulheres. João Saramago iluminou-a com a luz do Porto. “O Porto não está a defender os portuenses” entrevista A Capicua hip-hop houve momentos em que não tive es
  • Música
Luca Argel deixou o Rio de Janeiro em 2012. Logo que chegou ao Porto, começou pela primeira vez a participar como músico em rodas de samba. Integra colectivos como o Samba Sem Fronteiras e Bamba Social, escreve livros de poesia e estuda, divulga e cria samba. Este mês edita o novo álbum a solo, Conversa de Fila, e apresenta-o na Casa da Música. Entraste no samba ao sair do Brasil. Pois é. Fazer samba longe da fonte dá uma perspectiva que eu jamais teria se estivesse lá convivendo com um meio que já tem as suas tradições. Aqui era um campo pouco explorado. Eras mais livre aqui? Sim, estava livre de olhares especializados, podia criar o meu cânone pessoal e a minha identidade. É muito mais difícil escrever perto da tradição do que longe. Eu, que nunca fui do meio do samba, acabei caindo nele de uma forma muito livre, muito pouco comprometida com os padrões estabelecidos. Porquê o samba? O primeiro trabalho autoral em que toco samba é o Bandeira, de 2017. Senti a necessidade de o entender mais. Deparei-me com os textos do historiador Luiz Antônio Simas e comecei a perceber como o samba é representativo da identidade brasileira e da história política do Brasil. Como o samba tem dentro dele todas as tensões que existem na sociedade brasileira, todos os problemas e todas as coisas bonitas. E isso tornou-o muito mais do que um género musical. Tornou-o uma bandeira, que representa algo muito maior do que ele próprio. Para conhecer o Brasil é melhor ouvir samba do que o
Publicidade
  • Música
A alma inquieta de Manel Cruz já o levou a projectos como os Ornatos Violeta, Foge Foge Bandido, Pluto ou Supernada. Vida Nova é o livro-disco que apresenta na Casa da Música no domingo 28. Como é que este disco começou? Não lançava um disco há oito anos e não é que tenha desistido de fazer música, mas ia nadando. Na reunião dos Ornatos estive só naquilo e depois mais um ano ou dois a gastar o dinheiro que ganhei. Senti aquela pressão de fazer alguma coisa e entrei num capítulo depressivo, não me saía nada. Comecei então a vir para o estúdio tipo função pública. Fazia uma música por dia e muitas deitava logo ao lixo. O trabalho que fazes para trás serve para realização pessoal, mas tem um lado perverso: não te vai servir para sempre. Um artista acaba por se sentir sempre no zero. Tens que te reinventar, precisas de encontrar o retorno daquilo que és naquilo que fazes. Comecei a fazer músicas com o ukulele, a regressar às raízes: para fazer alguma coisa, tenho de ser capaz de fazer com pouco. Tens tido projectos a solo, mas nunca verdadeiramente a solo. Aqui também estás rodeado por músicos. Eu tenho muitas ideias, mas não são todas boas. O input que outro gajo me vai dar vai ser sempre mais original, porque vai criar um mutante daquilo que eu projectei, que não é dominado por nenhum de nós. Tem um factor de abismo que é muito mais rico. Ter que lidar com outra pessoa dá mais trabalho, mas é muito mais desafiante, porque te coloca numa posição mais frágil. O disco tem
  • Música
  • Brasileira
  • preço 2 de 4
Era um sonho antigo de Caetano Veloso subir ao palco com os seus três filhos. Aconteceu pela primeira vez em 2017, no Brasil, a propósito de uma digressão que virou disco e que chega agora a Portugal. O espectáculo une composições dos filhos Moreno (45 anos), Zeca (26 anos) e Tom (21 anos) a releituras da obra do pai. Pela vitalidade de Caetano ou pela descoberta do talento dos seus rebentos, é um dos concertos imperdíveis de Julho. Um espectáculo como este é um momento especial na vida de um artista. Como é estar ali em cima do palco a partilhar a sua música, a sua vida e a sua família com o público? Caetano: Para mim é uma felicidade. Sonhei com isso por um bom tempo. Quando finalmente todos puderam e quiseram fazer, foi um misto de gozo e apreensão. Cada ensaio era uma bênção, mas cada noite eram horas de preocupação no travesseiro: será que com isso ponho meus filhos em situação demasiado vulnerável? Será que as plateias vão acolher nosso clima muito peculiar? Depois da estreia vimos que as pessoas são tocadas pelo que fazemos e pelo que representamos. Alguma vez o preocupou ver os seus filhos a seguir o caminho da música? Caetano: Nunca. Moreno é físico, formou-se na universidade e chegou a participar da construção de um laboratório de partículas subatómicas na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mas desde menino que canta e gosta de ouvir. Aos nove anos escreveu a letra de uma música que compus. No começo da juventude, formou o grupo +2, com Kassin e Domenico. Tudo
Recomendado
    Também poderá gostar
    Também poderá gostar
    Publicidade