No meio de um emaranhado de cabos coloridos, Alexandre Soares abre as portas ao caos controlado do seu estúdio na Sonoscopia. Embrenhado entre sintetizadores, samplers, guitarras, pedais, colunas e computadores, tem ao seu lado Ana Deus. Estes dois nomes históricos da música portuguesa, um ex-GNR e uma ex-Ban, cruzaram-se pela primeira vez nos Três Tristes Tigres.
Nos anos 90, numa época em que a música portuguesa parecia perdida a contemplar o passado e a traduzir o que vinha lá de fora, foram visionários na forma como dosearam a eloquência poética de Regina Guimarães (o terceiro tigre) entre guitarras e programações. A colectânea Visita de Estudo (2001) foi o ponto final. Desde então, continuaram ligados à música e aos cruzamentos desta com a dança, o teatro, o cinema e a poesia. Em 2010, Ana e Alexandre reencontraram-se em Osso Vaidoso. O prazer que ela tinha em trabalhar mais as palavras conjurou um som mais cru, com rédea solta sobre as galáxias da guitarra dele.
Em 2017, o passado dos Três Tristes Tigres, que já soava a futuro, encaixou maravilhosamente no presente. Voltaram a assumir o nome para uma série de concertos, até que chegou a altura de fazer música nova. “Quando mexemos nas músicas antigas, elas começaram logo a mudar e a ficar mais próximas do que somos hoje”, conta Alexandre. Procuraram “um som maior, com mais coisas, a abrir outra vez a electrónica”. “Quisemos encontrar um som que fizesse sentido para nós agora, para não ir buscar o que o grupo antigo já fez. Começámos completamente do zero.”
O resultado foi Mínima Luz, o primeiro álbum de música original dos Três Tristes Tigres desde 1998, que será editado este ano. Um rock mais rugido e delirante, contaminado com circuitos electrónicos, e outros temas mais ambientais e lentos. Para chegar aqui, foram importantes as pessoas e as máquinas. Alexandre aponta, entusiasmado, para um sampler granular: “Aquilo disseca-te o som. Podes arranjar um grãozinho, uma parcela mínima, e a partir disso reconstróis um som grande.” Ao lado, estão os sintetizadores modulares. “São bastante instáveis, com eles consegues desenhar um som único porque interagem uns com os outros. Consegues criar os sons que tens na tua cabeça.”
Este som mais cheio vem também das mãos de convidados, como o baterista Fred Ferreira, o baixista Rui Martelo, o percussionista Gustavo Costa e a harpista Angélica Salvi. Nas letras há traduções adaptadas de poemas de William Blake e Langston Hughes, cinco poemas originais de Regina Guimarães e um de Luca Argel. A estes autores, Ana Deus sugeriu “algo próximo da profecia, de desejos que convocam forças”. “Imaginei como a palavra é um princípio de muita coisa; é o princípio do pensamento, do desejo. Acredito na transformação de que o que pensas e desejas pode acontecer”, explica. “Mas não é tão simples quanto o pensamento positivo, tem a ver com não replicar as desgraças do dia-a-dia. Há pessoas que estão fechadas nos conventos a rezar pelo bem do mundo e... Aquilo fará sentido? Se calhar faz, para eles, mas para mim faz sentido uma mínima luz de vontade, de desejo.”
Ana destaca a letra de “Língua Franca”, onde pediu a Regina Guimarães para imaginar que “todos os seres se falavam e entendiam”. Deus sonhou, Regina escreveu e a obra nasceu. “Estamos a ficar um bocado divorciados do natural. Tenho a convicção e a fé de que somos todos muito mais próximos do que achamos, desde o vegetal ao mineral, apesar de estarmos em estádios muito diferentes e de nos acharmos superiores.” Também há uma letra sua. “Esforço-me sempre para tentar escrever uma letra por disco. Esta fala de um universo sem dor. Gostei de cantar uma coisa mais surrealista porque posso ser surpreendida por outros sentidos. Pode ser que tenha relações plásticas e elásticas, e consiga ir sentindo coisas diferentes à medida que a canto”, conta.
Há um ponto no processo de criação em que os Tigres divergem. Ana gostava de trabalhar mais as gravações vocais, Alexandre prefere o risco, a tensão e a captura de um instante. “Sou uma pessoa naturalmente insatisfeita”, diz ele. “Ponho muito em dúvida as coisas, gosto de experimentar, deito muitas coisas fora e depois tenho que as recuperar. Mas eu gosto desta vida de composição e de tocar. Venho para aqui todos os dias, gosto do que faço.”
“Antes era muito mais despreocupada e, nesse sentido, mais livre”, refere Ana Deus. “Cada vez se dá mais atenção ao que se escreve e ao que se transmite. A minha autocensura aumentou. A idade tem esse peso.” Apesar disso, com o passar dos anos ela ganhou uma nova liberdade através da voz. “Perdi um bocado o medo. Os concertos dos Tigres tinham uma densidade sonora muito forte, mas acho que já tenho mais arcaboiço. Tornei-me mais competente porque ganhei a liberdade de me separar do que estava gravado, portanto é mais confortável para mim cantar agora”, assume. “Com esse desprendimento vou percebendo melhor como fazer as coisas como eu quero, como me servem melhor.”
Mesmo quando olham para trás, os Três Tristes Tigres nunca vivem debruçados sobre o passado. Sempre se situaram uns passos à frente do seu tempo. É aí que os continuaremos a encontrar, à procura da satisfação na permanente insatisfação.