'Os Dez Espelhos de Benjamin Zarco' é o último romance de Richard Zimler, acabado de chegar às livrarias. Depois de o ler de ponta a ponta, falamos com o autor sobre o amor no mundo e a falta dele.
Depois da estreia no Rio de Janeiro em 2017, Luis Lobianco traz o monólogo Gisberta, sobre Gisberta Salce Junior - mulher transgénero brasileira que foi agredida, violada e assassinada no Porto em 2006 por um grupo de adolescentes -, ao Teatro Sá da Bandeira, terça 27 e quarta 28, seguindo depois para Lisboa. Num Brasil onde políticos como Jair Bolsonaro (na altura desta entrevista ainda não se sabia que Bolsonaro ganhara as eleições), legitimam as agressões e o ódio contra pessoas LGBTI, Lobianco acredita que “o teatro funciona como um espaço de urgência, um pedido de socorro”. Lá e cá, a transfobia precisa de ser um assunto sempre em cima da mesa.
Quando e como soube da história de Gisberta?
Foi através da música “Balada de Gisberta”, de Pedro Abrunhosa, na interpretação de Maria Bethânia. Eu já buscava uma história para contar num projecto a solo de teatro. Num momento de férias pude escutar a música com mais atenção e fui pesquisar a história. Naquele exacto dia o assassinato da Gisberta fazia 10 anos. Comecei a aprofundar a pesquisa imediatamente e a mobilizar pessoas. Isso foi em Fevereiro de 2016. Em Março de 2017 estreámos.
O assassinato dela foi falado no Brasil?
O crime ainda é muito pouco falado por aqui. Mesmo nos círculos LGBTI [Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans, Intersexuais], a história de Gisberta é mais conhecida entre a militância. A peça, junto com a música de Abrunhosa e a interpretação de Bethânia, tem a função de consciencializar fora da nossa bolha de entendimento sobre as consequências da LGBTfobia.
O que o levou a criar um espectáculo sobre a vida de Gisberta?
Sou um actor gay e a minha formação foi na cena gay da rua carioca, mais precisamente o bairro boémio da Lapa (além da faculdade de teatro). Os meus projectos sempre abordaram a diversidade com humor, música e drama.
O Brasil é um dos países do mundo onde mais se mata pessoas LGBTI. Esses crimes de ódio, sobretudo contra pessoas trans, ou são ignorados ou secundarizados pelos media tradicionais. Nesse contexto, qual a importância de falar desta história no teatro?
Entre LGBTIs, as pessoas trans ficam mais expostas porque os seus corpos são evidentes e desafiam os padrões de identidade impostos pela sociedade. A reacção é o apagamento dessa existência. No Brasil crescem os discursos de ódio. O conservadorismo avança com representantes na política. Esses líderes encorajam gente intolerante e não resolvida com a sua própria sexualidade. As igrejas fundamentalistas também incitam o combate àquilo que contraria os seus dogmas. O cenário é o pior possível. Todos os dias morrem Gisbertas no Brasil, sem qualquer tipo de comoção. O teatro funciona como um espaço de urgência, pedido de socorro. Ao se deixar envolver com as subtilezas da dramaturgia, uma mensagem de tolerância pode ser absorvida.
Neste momento o Brasil vive uma polarização política, social e cultural muito forte. Que tipo de públicos têm visto a peça e quais as reacções?
O nosso público é o mais diverso possível. Em mais de um ano de apresentações, por muitas cidades, temos recebido grupos de trans, mães, escolas, idosos, jovens e até pessoas que não têm o hábito de ir ao teatro. A peça tornou-se num fenómeno popular e esse era o objectivo dela: popularizar essa reflexão. Nunca tivemos uma reacção adversa provocada por reaccionários.
Que tipo de investigação foi feita para criar este espectáculo?
Num primeiro momento percebi que só havia material jornalístico em Portugal e contactei alguns repórteres, que prontamente colaboraram. Também através deles, tive acesso aos documentos do processo criminal e a contactos da família. Em seguida tive alguns encontros com esses parentes, que nos receberam com total confiança e carinho. Abriram fotos, memórias e objectos. Entrámos na sala de ensaio com todo esse material e começámos a construir a narrativa como uma colcha de retalhos. No fim de 2016 fui ao Porto refazer a trajectória de vida e morte de Gisberta pessoalmente. Conversei com muita gente próxima da história.
A morte de Gisberta foi de uma violência extrema e abominável, mas a vida dela não foi só dor. Muitas vezes há a tendência de falar das vidas de pessoas trans só da perspectiva negativa. Tentou não ir só por aí? Não fazer um personagem plano?
Nas conversas com as irmãs dela rimos muito. Gisberta era solar, inteligente e tinha alma de artista. Tudo era dito com brilhos nos olhos. Trouxe essa vibração para história, somando o facto de que sou um actor comediante. Seria terrível negar isso em mim e nela. A nossa bandeira é o arco-íris, é festiva, inclusiva e musical. Partimos daí para contar a história. Mas não tem como deixar de abordar o facto trágico. É o momento da narrativa que deixamos as cores e mergulhamos no concreto: a descrição dos envolvidos e os dias de tortura a que foi submetida. Costumo dizer que quanto mais as pessoas riem no início do espectáculo, mais choram no fim.
Por que é que decidiu interpretar Gisberta? Por que não uma actriz trans como protagonista?
Não [a] protagonizo. Sou na peça um contador que assume vários papéis de quem observa a sua jornada: a irmã, um fã, uma amiga, o juiz e os próprios menores envolvidos no crime. A personagem principal talvez seja eu mesmo, artista, com a função de comunicar uma história urgente. Conto passagens das minhas descobertas, inclusive. Estamos, portanto, a falar de um lugar de ausência: Gisberta só poderia falar por si e foi apagada. Essas personagens, junto com o público e com o artista, constroem uma imagem própria e particular. O protagonista é a história. Não tivemos, portanto, uma actriz trans na peça porque é um projecto particular, elaborado em condições absolutamente adversas, que é como estamos a trabalhar com cultura aqui no Brasil. Tivemos profissionais envolvidos por nove meses sem receber nada por isso. Além de tudo, acho que a arte é feita de nuances muito subtis. Querer impor géneros aos corpos artísticos, principalmente no teatro, é como impor género a corpos reais.