O MURO Festival de Arte Urbana LX_2021 deixa sempre um legado à cidade. Deixou em Carnide em 2016, depois em Marvila no ano seguinte, em 2019 pintou no Lumiar e à quarta vez usa o Parque das Nações como tela, numa edição maior e mais descentralizada (de 3 a 11 de Julho). Este ano, o festival saiu à rua para provar que há muros que nos aproximam, tendo por tema “O MURO QUE NOS (RE)ÚNE”, uma iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa, em co-produção com a Junta de Freguesia do Parque das Nações e a Gebalis, responsável pela gestão do arrendamento da habitação municipal em Lisboa.
Uma exposição em nome individual num espaço vazio da Gare do Oriente, para ver até 31 de Julho, e um mural de grandes dimensões na Ponte Vasco da Gama, que veio mais para ficar. Sérgio Odeith regressou à urbe vindo da aldeia para nos trocar as voltas com perspectivas, cores, animais, carros e muita, muita tinta. Não quis ser fotografado a olhar para a objectiva, nem revelar todas as peças da exposição Obliquity, de forma a manter o factor surpresa e não estragar o golpe de magia. Porque há quase sempre um ângulo certo para apreciar estas telas.
Trazes o fenómeno da anamorfose a esta exposição e para o mural?
Sim. Isto foi um desafio a que não consegui resistir, mas ao início até ia quase desistindo!
Porquê?
Pela dimensão do trabalho. Eu estava com a energia um bocadinho em baixo, só que depois vi o espaço e pensei que seria uma oportunidade única de fazer qualquer coisa que ninguém tivesse visto. Este estilo de pintura num espaço abandonado, em que está tudo um bocado velho e em que as próprias paredes foram pintadas. Normalmente o espaço numa exposição ou tem telas ou estruturas, não é o próprio espaço abandonado a ser pintado.
Estás habituado a fazer obras de grande dimensão, porque achavas não ter energia para este trabalho em concreto?
O desafio não tem a ver com a dimensão, tem a ver com a criatividade de peça para peça no espaço de um mês. Mas depois fiz a primeira e fiquei logo: “Wow, brutal. Então e agora o que vem a seguir?”
Estás a fazer de improviso?
Sim, não houve aqui nada planeado. E isto vai ter um percurso para as pessoas entrarem e passarem pelas peças todas no ângulo certo...
Além da exposição individual, tens uma peça de maior dimensão no Parque Tejo.
Pois, essa era uma das partes que eu vinha aqui dizer que não queria fazer. Não me sentia com energia, mas vai ser fixe fazer aquilo. Uma das razões era ter a oportunidade de pintar um pilar da ponte [Vasco da Gama], acho que é uma cena única.
E o que vais pintar?
Vai ser a palavra Lisboa, anamórfica. É a mesma coisa que eu fiz num edifício de luxo na Holanda: num dos pilares escrevi o nome daquele complexo todo. E vai ser uma coisa desse género, que só vai ter um ponto de vista.
A arte urbana é hoje em dia bastante aceite, mas tens saudades de te esconder e dessa adrenalina?
O ilegal praticamente já não acontece, mas também já não tenho essa vontade. Agora, eu continuo a esconder-me! Às vezes os paparazzi dos graffitis não deixam, eles conseguem descobrir onde é que estamos a pintar.
Espera, há paparazzi dos graffitis?
Há um bocadinho. Se eu publicar hoje uma foto, amanhã já lá estão com as câmaras quase a apontar para a minha cara.
Há quem te chame writer ou graffiter... como é que te defines?
Talvez já tenha sido writer, talvez já tenha sido graffiter, mas agora eu pinto é com latas.
Chamem o que quiserem, não é?
Exactamente. Olha, em 2006 fiz uma lata anamórfica espetada no chão com um lettering por trás e eu meti mesmo isso por cima, ‘call it what the fuck you want’ [chamem-lhe o que quiserem]. Sou artista e pinto com latas.
Amanhã pode apetecer-te fazer outra coisa qualquer?
Já tentei pintar várias vezes com pincéis, mas não é fácil. Tens de estar a misturar, lavar os pincéis, lavar os rolos e se for uma parede texturada tens de andar ali a pressionar para a tinta entrar. Então acabo sempre por desistir.
E és um artista autodidacta. Como é que te metes numa coisa destas da anamorfose? Não é simples conseguir a ilusão.
Eu sempre estive ligado à parte artística 3D, não anamórfica com distorção. Isto começou tudo com uma peça pequenina, uma coisa mesmo minúscula, numa rua ao calhas. Foi um processo de aperfeiçoamento para chegar a um ponto de realismo, de enganar o olho, sem denunciar como está feito. E aqui vou fazer duas coisas que não fiz até hoje, tipo inédito, com um estilo diferente.
Tenho aqui uma dúvida. Porquê Odeith? Até 2003 eras só Eith.
Eu era mais jovem, mais maluco e a minha loja de tatuagens chamava-se Eith, de hate [ódio]. Em 2003, eu era rebelde, odeio isto tudo, odeio o mundo. E para não me estar a chamar Eith como a loja, acrescentei Od e fica uma palavra em português.
Agora odeias menos?
Agora o nome Odeith, com 45 anos e um bocadinho mais famoso, soa-me estranho. Mas no estrangeiro é muito fixe, porque eles dizem “oudith”. Soa perfeito, espectacular. Agora em Portugal... odeio-te?
Quando terminares aquela bela empreitada no pilar, qual o teu próximo destino?
Vou para a minha terra, que eu agora mudei-me para o campo.
Um artista urbano a mudar-se para o campo.
É brutal.
Então agora vais ser um artista rural.
Exactamente! E vai estar aqui por exemplo o crânio de uma galinha [ri-se]. Ontem cheguei a casa e a minha mulher disse: ‘Olha, veio aqui o Sr. Silvino e já matou um frango’. Tu compras os pitos, dás-lhes comida e agora quem é que vai matar? A gente não tinha coragem. Uma coisa é ter as duas galinhas a pôr ovos, outra coisa é matar galinhas. Não, isso não dá.
Mas têm boa vizinhança para vos ajudar.
São pessoas impecáveis. É no campo, mas é a meia hora aqui da ponte. Por exemplo, o meu vizinho, esse que foi lá matar o frango, conduziu eléctricos em Lisboa durante 35 anos. Aquela zona é feita de pessoal que era da cidade de Lisboa.
Estás integrado?
É espectacular. Ainda por cima eu morava no centro da Amadora, encostado à Cova da Moura. As sirenes, as gritarias, a música alta... Agora não, só os passarinhos.