Benfica ainda é um daqueles bairros em que pode (e deve) dizer bom dia à vizinha que está a estender a roupa – se for novato nas redondezas, ou estiver só à procura de um bom restaurante para almoçar ou jantar, vai ser logo bem visto e com sorte leva uma ou outra recomendação para o caminho. Das cervejarias com fama para mariscadas à grande, aos restaurantes de peixe e outros de bons nacos na pedra, há bons restaurantes em Benfica para fugir ao centro da cidade, aos sítios da moda e às filas intermináveis.
Lembro-me de um tempo em que as pessoas eram loucas pelo futebol, mas não doentes pelo futebol. Eram tempos em que conseguia dizer que vivia em Benfica, sem que isso gerasse comentários de cariz futebolístico. Hoje, quando digo que vivi em Benfica, noto que tenho de esclarecer o ouvinte que me refiro a um bairro e não ao Estádio da Luz. (Lembro-me de, a dada altura, isto acontecer também com conversas sobre Jesus – se me falhasse acrescentar a palavra “Cristo”, mesmo que estivesse a falar do sermão da montanha, percebia que muitos dos que me ouviam achavam que estaria a falar sobre Jorge Jesus.) Enquanto colegas meus de escola e amigos viviam ou em Benfica ou em São Domingos de Benfica, tive a sorte de viver nos dois sítios em simultâneo. Isto porque a casa dos meus pais era em Benfica, na Rua da Venezuela, junto ao encantador Bairro de Santa Cruz, que me habituei a ver da janela do meu quarto, várias vezes dizendo para com os meus botões que um dia ainda haveria de viver numa daquelas casinhas (consegui, mais tarde, cumprir essa promessa a mim mesmo) e a da minha avó Maria ficava em São Domingos, junto ao lugar que todo o habitante da zona sabe que é o centro do mundo: o restaurante Califa (para uns o templo do bom croquete; para mim, a capital das duchaises). Nunca houve duas freguesias separadas, na minha vida – ambas eram o meu planeta.
Foi lá que fiz os melhores anos de escola, entre a Pedro de Santarém e a José Gomes Ferreira (na altura secamente baptizada como Escola Secundária de Benfica), e por “melhores anos” entenda-se até o 8º, que tive de repetir. Foi no Turim e no Fonte Nova que vi grandes filmes da minha vida – e também o Tubarão IV. Foi nesse lugar de lendas que é o Fófó (o Clube Futebol Benfica, que não tem a ver com o SLB) que tive a minha primeira, última e única aula de judo. Benfica foi onde fiz rádio (pirata) e amor pela primeira vez.
Estas coisas tornam Benfica e São Domingos especiais para mim, mas há muito que as torna especiais para toda a gente. Em mais nenhuma zona de Lisboa encontro fusão tão perfeita de cidade com aldeia, de eficiência suburbana com elegância de metrópole. Há prédios indiferentes e jardins charmosos. Há recantos acolhedores que julgamos só nossos, alguns com restaurantes acolhedores que julgamos só nossos. É tentador a snobes ignorantes do centro da cidade estampar nos bairros onde cresci (e que nos livros de Eça são referidos como uma aprazível zona campestre) o epíteto de subúrbio decadente: “Isso não é ao pé da Buraca?”. É, e depois?
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