“Nós, os jesuítas, gostamos da tensão, de procurar o equilíbrio das coisas, de nos mexermos nos cinzentos e de ver quais são as questões que não têm resposta evidente mas que precisam dela.” Uma resposta que o padre Francisco Mota está a ajudar a fazer nascer em São Roque, na nova casa da Companhia de Jesus e da sua revista centenária, a Brotéria, que assim transcende o papel e se torna num novo centro cultural de Lisboa. Uma casa de porta aberta a todos, para o encontro da fé com as culturas urbanas, num espaço com livraria, galeria, biblioteca e restaurante, que abre oficialmente esta quinta-feira, 23.
A transformação da Brotéria dá-se com uma mudança de casa, para o Palácio dos Condes de Tomar, edifício nas mãos da Santa Casa da Misericórdia desde 2012. Foi construído no século XVI. Mais tarde serviu de residência a António Bernardo da Costa Cabral, primeiro marquês de Tomar – tendo sido a última morada da família. Mas para a cidade foi mais que isso: entre 1973 e 2013 acolheu a Hemeroteca Municipal.
O palácio foi integralmente restaurado e é mais uma peça do que será o Pólo Cultural de São Roque, composto ainda pela Igreja e o Museu de São Roque, e a futura Casa da Ásia – Colecção Francisco Capelo, a ser instalada mesmo ao lado, no Palácio de São Roque.
Em 2017, com a obra em curso, Francisco Mota, que é director-geral da Brotéria, e a equipa perceberam que era possível pensar o espaço como um centro cultural. “Tínhamos de criar um projecto de raiz que fosse diferente daquele que se faz do outro lado do largo e que expandisse as linguagens e os públicos. A programação tinha de ter velocidade de resposta a questões relacionadas com o presente”, diz.
O palácio tem quatro pisos. O último serve de apartamento para seis padres jesuítas. “Isto é mais uma casa do que um centro cultural, mas é uma casa aberta a todos e à qual damos vida com cultura. Há aqui um ambiente muito monacal, uma espécie de mosteiro no meio da cidade”, afirma Francisco. Os restantes três pisos estão livres para deambulação dos futuros visitantes, ou até de quem quiser alugar salas e salões.
Em Março, a livraria Snob vai mudar-se de Santos para ali. Vai ocupar todo o lobby, a sua antecâmara lateral e parte do espaço junto à escadaria. “A Snob trabalha muito com literatura contemporânea e tem uma identidade muito diferente da nossa. É interessante para um projecto como este, que tem como missão principal o encontro entre a fé cristã e o encontro das culturas contemporâneas”, refere Francisco.
Ainda no rés-do-chão, encontram-se as três salas que compõem a galeria de que João Sarmento, diácono com ordenação sacerdotal, será curador – o trabalho começa já este sábado, com a inauguração de “Todas as Coisas”, a exposição que passa em revista a vida da Brotéria através da reapropriação dos materiais da antiga biblioteca.
Nesta casa, a arte assume um papel de disrupção. “A casa é linda de uma perspectiva histórica, é de um tempo que não é o nosso. Mas a Brotéria não é do passado, é um projecto antigo que vive do presente. Por isso toda esta carga histórica deslumbrante tem de ser actualizada com outras expressões e linguagens”, explica Francisco. O que se faz com obras de artistas de renome e emergentes, todas cedidas por coleccionadores privados. “Normalmente peças destas estão em museus, mas há uma barreira moral entre a obra e o espectador. Aqui não, as peças fundem-se com o espaço, estão à vista de todos e por isso é que conseguimos ter um palácio do século XVI com obras do século XXI”, diz.
A escultura Seda, de Rui Chafes, é a primeira a mostrar-se, logo à entrada. Mas pelas salas desfilam peças do pintor Jorge Queiroz, fotografias de Rui Calçada Bastos, instalações da dupla Dias & Riedweg e uma outra fotografia inusitada de João Penalva.
À arquitectura secular junta-se mobiliário actual. O design esteve nas mãos do estúdio do Porto Non-verbal Club e os móveis são da dupla Pedrita. Cadeiras amarelas e azuis, mesas desmontáveis e estruturas em ferro – tudo pensado na vertente utilitária do espaço. “Todo o equipamento precisa de alguma contemporaneidade para funcionar aqui. Tem de haver sempre uma relação entre ter a responsabilidade de manter o que é herdado e entre o que se vai fazer daqui para a frente”, salienta o padre.
A escadaria marmoreada e imponente, iluminada por uma grande clarabóia, dá acesso ao piso superior e às salas de estudo, aos espaços para eventos, à biblioteca e a um oratório – o salão Homem Espuma. Os tectos e as paredes trabalhados não nos preparam, no entanto, para a “sala dos couros”, obscura e misteriosa, coberta de couro castanho e onde ficará uma mesa comprida para ler.
Escondida dos olhares curiosos, está a biblioteca-arquivo, com mais de 160 mil volumes. São 2600 metros lineares de estantes rolantes compactas, distribuídas por cinco entrepisos. “Estas salas são a caixa forte da Brotéria, temos aqui verdadeiras obras-primas da literatura”, realça o director da Brotéria. O acesso ao espaço é restrito.
O café-restaurante foi pensado como o “espaço forte para convívios” e dá, por isso, para o logradouro. É o Pátio das Cecídias e está como novo, com mesas, cadeiras e a sombra de um limoeiro carregado. Um lugar privilegiado para mais programação.