Ilustração Audiolivro
©Raquel Dias da Silva
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Histórias ao ouvido: a tendência dos audiolivros

Os audiolivros estão a conquistar espaço nas prateleiras digitais. Somos todo ouvidos, e falámos com editores e leitores para perceber esta tendência.

Raquel Dias da Silva
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Em meados de 1450, Johannes Gutenberg revolucionou a Europa: inventou a prensa móvel, que permitiu a impressão em massa de livros, até então escritos à mão. A técnica não foi pioneira – pelo menos desde o século VII que se “imprimia” em xilogravura na China, onde mais tarde se deram os primeiros passos para o advento da imprensa, com um sistema em porcelana –, mas foi inovadora: tornou possível, em todo o mundo, começar a ler as histórias que, outrora, só era possível ouvir. Era, então, tecnologia de ponta; cinco séculos depois, já ninguém pensa nesses termos.

Agora, a tecnologia que está a transformar a indústria do livro é outra, e não só nos convida a trocar o papel pelo ecrã, como a resgatar a tradição oral. Falamos dos audiolivros, um formato que está a popularizar-se. De repente, estão a contar-nos histórias ao ouvido ao mesmo tempo que andamos de transportes, fazemos desporto, cozinhamos o jantar ou regamos as plantas.

O movimento é global. Em países como a França, o Reino Unido e os EUA, o mercado dos audiolivros não só está consolidado como em franca expansão. Anteriores aos chamados e-books, os primeiros “livros falados” surgiram nos anos 1930, pela American Foundation for the Blind, para pessoas com deficiência visual. Mas, com a progressiva vulgarização dos leitores de cassetes, a produção de audiolivros generalizou-se nos países anglo-saxónicos. Tirando as produções infantis em disco e cassete, o mercado em Portugal sempre foi incipiente, ainda que, nos anos 2000, se tenha falado amiúde de uma alegada “explosão”, inclusive com o lançamento da colecção Livros para Ouvir, em CD, da editora 101 Noites, entretanto desaparecida. “Nunca tivemos verdadeiramente um mercado. Estamos a formá-lo, mas os resultados têm sido surpreendentes”, diz Pedro Sobral, presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros e administrador do grupo LeYa, que voltou a pôr os audiolivros na ordem do dia em Abril de 2021, com o lançamento de uma plataforma de conteúdos digitais e áudio.

Ilustração Anne
©Raquel Dias de Silva

A Kobo Plus e_LeYa disponibiliza mais de 100 mil audiolivros e mais de 900 mil ebooks, em português, inglês, francês ou espanhol. O acesso é feito mediante subscrição, com o preço a variar entre os 5,99€, para ebooks ou audiolivros, e os 7,99€, para um combinado dos dois formatos. “Está a correr muito acima das nossas expectativas”, afirma Pedro Sobral. “Temos largos milhares de subscritores a pagar.” Sem revelar números, o responsável adianta que excedem em três vezes as projecções iniciais. “As pessoas continuam a ler mais do que ouvem, mas os subscritores de audiolivros ouvem, em média, entre um a dois livros por mês, mais de 50% em português de Portugal [seguido do francês e do inglês]. É uma utilização muito interessante para um mercado como o nosso.”

Os custos ainda são muito elevados, mas a LeYa tem prevista a produção de 10 a 30 audiolivros por mês. “Temos estúdios, fazemos edição de som e contratamos narradores, [como Rodrigo Guedes de Carvalho, que dá voz a Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, e à sua própria obra, Margarida Espantada, também lançada em audiolivro]. Começámos por produzir audiolivros dos autores portugueses mais importantes do nosso catálogo, como António Lobo Antunes e Lídia Jorge, e de clássicos, como Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós, mas também a responder à procura, com audiolivros de não-ficção, como Hábitos Atómicos, de James Clear, e bestsellers, como A Gorda, da Isabela Figueiredo, por exemplo. Este investimento é um importante eixo estratégico da LeYa. Temos um plano de crescimento ambicioso e queremos, de facto, mostrar aos portugueses a grande vantagem do audiolivro, que é permitir o multitasking e criar momentos de leitura que, de outra forma, não seriam possíveis.”

Sete meses depois da LeYa, em Novembro de 2021, a Porto Editora introduziu na Wook um catálogo com dezenas de milhares de audiolivros. Passou a ser possível comprá-los avulso e adicioná-los à Wook Reader, a biblioteca digital desta livraria online, à semelhança do que já acontecia com os ebooks. “Dadas as potencialidades dos audiolivros, tornou-se clara a necessidade de apostar no desenvolvimento deste formato”, diz Joana Branco, do gabinete de Comunicação e Imagem da Porto Editora, que também tem investido na gravação em português de títulos de sucesso, como O Tempo Entre Costuras, de María Duéñas, Longa Pétala de Mar, de Isabel Allende, ou O Profeta, de Kahlil Gibran. “Os podcasts ajudaram a popularizar o formato áudio e, sabendo que os audiolivros abrem outras oportunidades de leitura numa experiência de consumo que já é familiar, será inevitável o seu crescimento também junto dos leitores portugueses”, antevê, referindo estudos que indicam que uma parte dos consumidores adquire o mesmo livro em múltiplos formatos e que os audiófilos são significativamente mais activos em todos. “Os formatos complementam-se, já que se pode ouvir o romance de Isabel Allende no carro, na viagem de regresso a casa, e continuar a leitura do livro físico, antes de ir dormir.”

Ilustração Alice
©Raquel Dias da Silva

Leitor veterano e consumidor de ebooks há já dez anos, Luís M. Jorge, que trabalha em publicidade como copywriter, só começou a explorar o universo dos audiolivros há dois anos. É desses leitores intensos que gostam de intercalar os diferentes formatos. “Aproveitei o Audible [app da Amazon], porque oferece o primeiro mês e depois fica a 10€ [subscrição mensal], com o primeiro audiolivro grátis. Foi a maneira que encontrei para ler a andar, porque a pandemia forçou-me a passar muito mais tempo em casa, mas andava para aí uma ou duas horas por dia, ao final da tarde”, conta-nos, antes de revelar que lê e ouve ler quer ficção quer não-ficção, em francês, inglês e espanhol. “Agora, estou a ler em papel a Olga Tokarczuk, The Books of Jacob, mas isto tem 900 e tal páginas, e acabo por ouvir também, quando vou passear ou ao ginásio. Se perder o fio à meada, volto atrás ou vou mesmo ao livro físico. Ou seja, são muito poucos os audiolivros que ouço sem ter também o livro em papel. Muitas vezes tenho também em ebook. É uma maneira de me defender das limitações à leitura. Ao serão, tenho uma ou duas horas para ler, mas gosto de ler mais, três ou quatro horas. A única maneira de o fazer é assim, ir ouvindo também ao longo do dia.”

Sobre o trabalho de produção e a escolha do narrador, factores importantíssimos para audiófilos, Luís M. Jorge deixa claro que só exige uma boa interpretação, com ritmo e clareza na dicção. Não gosta de fogos de artifício nem excesso de sonoplastia. Prefere uma “leitura clássica”, de que é exemplo a versão áudio da série A Dance to the Music of Time, de Anthony Powell, narrada pelo actor inglês Simon Vance. “Também já me aconteceu ouvir audiolivros narrados pelos próprios autores e acho graça”, admite. Não é o único. “Tento sempre escolher livros narrados pelo próprio autor e o Kobo é óptimo, porque faz muitas sugestões”, diz Rita da Nova, que é co-autora de dois podcasts, um dos quais para leitores, o Livra-te. “Experimentei audiolivros pela primeira vez em 2021, porque faço pet sitting, é um dos meus side jobs, e foi uma maneira de ocupar o tempo. O primeiro que ouvi foi o Becoming, da Michelle Obama, que é narrado por ela. É incrível, foi como tê-la ao meu ouvido, em carne e osso.” Tal como quando ouviu Greenlights, as memórias do actor Matthew McConaughey. Não-ficção é o único género que ouve. “Não tenho muita paciência para ler não-ficção, mas gosto de ouvir, porque me faz lembrar podcasts”, explica Rita, que os compra avulso. “Ouço muito a conduzir, a passear e a regar plantas, tudo o que forem actividades mais mecânicas.”

A produtividade parece estar no cerne da questão. Dividido entre dois mundos, o dos leitores e o dos editores, Rui Vasconcelos também defende o papel dos audiolivros na ocupação dos tempos livres e dos “tempos mortos” – no trânsito ou na fila do supermercado. “No ano passado consumi 27 audiolivros, muitos deles com mais de 20 horas, que posso ouvir a 1.5x de velocidade, o que demora menos de uma semana”, partilha o engenheiro, que em Setembro de 2021 co-fundou a Radiobooks, para distribuir, co-financiar e executar a tradução de livros em audiolivros, sobretudo com recurso a inteligência artificial. As desvantagens em relação à narração profissional são óbvias – tom robótico e dificuldades para pronunciar algumas palavras –, mas contratar um locutor “pode custar cerca de 200€ a 250€ por hora, o que se traduz num investimento caro para um produto ainda com pouca penetração”. Rui, que se diz um apaixonado por audiolivros, está empenhado em acelerar o acesso e consumo de livros através deste formato. Grão a grão, com mais ou menos profissionalismo, talvez a coisa pegue.

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