Coisas de Loucos
©Paulo PorfírioAs coisas de Leopoldina de Almeida
©Paulo Porfírio

Um passado encurralado no Hospital Miguel Bombarda

Uma caixa esquecida no sótão do Hospital Miguel Bombarda resultou, para já, num livro.

Renata Lima Lobo
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Coisas de Loucos é o último livro de Catarina Gomes. Tem como ponto de partida um conjunto de objectos esquecidos numa caixa que encontrou no sótão do Hospital Miguel Bombarda, enquanto consultava o arquivo morto. A jornalista acabou por dar-lhes vida. Na verdade, oito vidas que passaram pelo primeiro hospital psiquiátrico a abrir no país – e também o primeiro a fechar.

“1 bilhete de identidade de 1931 com a pequena lombada cosida à mão. 1 relógio de bolso parado nas 6h27, da marca Tavannes. 1 medalhinha de dupla face em losango, daquelas de usar ao pescoço, com um homem de um lado e uma mulher do outro. 1 caderneta de racionamento de 1944.” A lista de objectos que a autora encontrou é enumerada, em parte, no primeiro capítulo do livro (“Na Caixa”), ocupando cerca de três páginas. São objectos banais, que poderiam pertencer a qualquer pessoa, mas foram encontrados dentro de uma caixa empoeirada. Pertenceram a pessoas com vidas conturbadas, nascidas entre o final do século XIX e início do século XX, que não só tiveram o azar de sofrer de doença mental, como a viveram numa altura “em que o confinamento e o afastamento surgia como a primeira resposta da medicina e da sociedade”, explica a autora nesse mesmo capítulo.

O fascínio por um mundo desconhecido e pela fragilidade da saúde mental são alguns dos motivos que atraem Catarina Gomes para o tema. A jornalista fala com empatia dos sujeitos que são o objecto da sua investigação: “Ao descobrir estas histórias tentei colocar-me nessa situação. A saúde mental é uma coisa tão frágil, [a doença] pode desencadear-se depois de um acidente, da morte de alguém, de um desemprego. É uma coisa tão absolutamente frágil que se pode atravessar na vida de cada um de nós.” O título do livro vem daí. “Quando dizes ‘coisas de loucos’ é muitas vezes quando estás a desqualificar algo que alguém faz e que tu achas excêntrico. Estes são objectos de pessoas que por acaso foram diagnosticadas com doença psiquiátrica. Ao mesmo tempo é uma ironia porque estas coisas são de loucos como podiam ser minhas.”

Investigação: admitida

“Muitos serviços fiz eu no Júlio de Matos, fui lá a muitas conferências de imprensa, a muitos congressos, coisas muito chatas. Sou jornalista há 20 anos e comecei a fazer Saúde há dez ou coisa do género. E sempre achei que aquilo era pouco. Escrevia sobre saúde mental, mas eu queria era escarafunchar o passado e o Bombarda em particular, por causa dos livros do [António] Lobo Antunes”, explica Catarina Gomes.

Em 2011, saiu com o jornal Público o artigo “Eles fecham o último capítulo do Bombarda”, onde acompanhava a saída e transferência dos últimos 24 moradores do hospital, poucos dias antes do fecho definitivo dos portões. Mas sempre que passava pelos corredores crescia a vontade de escrever sobre o passado da saúde mental em Portugal. “Havia sobretudo um corredor que tinha álbuns fotográficos abertos, com umas caras muito sinistras, umas coisas a preto e branco muito tristes. E ao mesmo tempo estavam numas estantes com grades, aquilo parecia ser um passado encurralado”, descreve.

Decidiu pedir para consultar os livros de admissões, “calhamaços muito carcomidos” com os registos de entradas e saídas de todas as pessoas que passaram pelo Bombarda. O acesso foi concedido. “De facto o meu interesse inicial eram aqueles livros, mas depois apareceu lá uma caixa. Com um ar assim muito abandonado e muito sozinho, mas ao mesmo tempo muito misteriosa”, conta. Uma caixa que acabou por ser a peça central da investigação que começou por incluir uma lista de antigos pacientes cujas vidas gostaria de investigar mais a fundo. Como o tenente Aparício Rebelo dos Santos, que assassinou o próprio Miguel Bombarda dentro do edifício; José Júlio Costa, o assassino do Presidente Sidónio Pais; o bailarino Valentim de Barros; ou Jaime Fernandes, agricultor tornado artista.

Estes dois últimos nomes sobreviveram ao corte final, mas todos os outros foram substituídos por completos desconhecidos, pessoas comuns que Catarina resgatou do passado com a ajuda dos objectos que deixaram para trás. “Pensei em não incluir o Valentim nem o Jaime, porque achei que já estava demasiado visto. Pessoas famosas não me interessam nada, a não ser que tenha uma perspectiva nova, que foi o caso”, explica.

Depois de muito sótão, conservatórias do registo civil ou mesmo cemitérios, as primeiras quatro histórias foram divulgadas entre Outubro e Novembro de 2019 no Público, uma série especial de reportagens chamada “O que eles deixaram no manicómio”, vencedora do Prémio de Jornalismo em Saúde, atribuído pelo Clube de Jornalistas e pela Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica. Passaram oito os anos desde a descoberta da caixa até à publicação das primeiras histórias. Uma Bolsa de Investigação Jornalística atribuída pela Fundação Calouste Gulbenkian deu o empurrão que faltava.

Exímia contadora de histórias, pelo meio Catarina ainda escreveu dois livros: Pai, tiveste medo? (2014), onde a Guerra Colonial é vista por filhos de ex-combatentes; e Furriel não é Nome de Pai (2018), sobre filhos que militares tiveram com mulheres africanas.

O bilhete de identidade

“Os objectos não estavam completamente desorganizados. Alguns estavam, mas a Leopoldina tinha uma listagem do depósito de objectos”. Catarina lembra a história com a qual mais se relacionou, a da única mulher do livro. Leopoldina de Almeida, 42 anos em 1931. Na caixa do sótão encontravam-se muitos objectos desta paciente, entre eles um bilhete de identidade cosido à mão. Na “profissão” lia-se “doméstica”. Mas Leopoldina era modista. A comprovar existe o carimbo com as maiúsculas “LEOPOLDINA D’ALMEIDA MODISTA.

“Era uma mulher, uma mulher da minha idade, a quem tinha acontecido uma série de adversidades. Ela enviuvou com 19 anos e fui descobrir o marido dela no Cemitério da Ajuda. Chorei baba e ranho. Numa altura em que as mulheres eram completamente desqualificadas, esta era uma mulher que se estava a tentar agarrar à sua profissão”, recorda. Além da identificação e do carimbo, Leopoldina deixou uns óculos, um crucifixo, um molho de quatro chaves e “vários papéis”, como ficaram inventariados.

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Pontas soltas

Nem todos os objectos resultaram numa história. Como um medalhão com dois lados: de um “uma mulher muito bonita, com o cabelo puxado em cima, com ar de século XIX e do outro lado era um homem muito elegante, com um bigodinho”, descreve. Mas Catarina nunca conseguiu descobrir informação sobre a medalha, que permanece uma incógnita. É uma das histórias que ficaram penduradas, para lamento da autora, mas que também vivem no livro, graças às imagens de Paulo Porfírio no anexo Objectos Soltos. “As fotografias são tão bonitas e tão sugestivas que é interessante imaginarmos as outras vidas que ficaram por contar. E que simbolizam os milhares que estão nos livros de admissões, os milhares de pessoas que passaram por este hospital e que tiveram estas vidas desgraçadas.”

Coisas de Loucos – O que eles deixaram no manicómio, Tinta da China, 264 pp. 17,90€

Veja o booktrailer aqui.

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