E, de repente, silêncio. Durante segundos não se ouviu um som no Coliseu de Lisboa, lotado para receber o novo espectáculo de Luís Franco Bastos.
Foi preciso esperar até aos 64 anos para subir em nome próprio ao palco do Coliseu de Lisboa. Herman José, referência da cultura popular e ídolo de meio país (será mais?), estreia-se no palco lisboeta a 12 e 13 de Abril. Não há drama nem mágoa por só agora acontecer, “com Amália foi a mesma coisa”. A espera permitiu, na verdade, aprimorar o espectáculo que o tem posto na estrada. Quando nos sentámos com Herman José, já o humorista tinha perdido a conta às entrevistas. Mesmo assim, não contou o tempo, nem perdeu a piada ou o charme.
Tem sido um dia difícil?
Como o espaço é benigno e a causa é muito gira não me chateia nada.
Mas ainda tem paciência para dias assim? Ou agora é que tem paciência?
Acho que agora dou um bocadinho mais de valor. A pessoa quando é nova é tudo um grande enfado. Ai, que maçada, estão estas pessoas a pedir autógrafos. Às vezes, quando os meus colegas mais novos se vêm queixar, aquelas miúdas das novelas, eu digo: ó filha, vai para Badajoz que já ninguém te conhece. A razão que nos traz aqui é tão simpática. O espectáculo que vou fazer aqui é uma maneira de homenagear os fiéis, aqueles que querem muito estar com o artista. São momentos tão simpáticos que falar neles é uma coisa agradável.
Isso é fruto da experiência?
Temos obrigação de descobrir quais são os mecanismos de compensação do processo de envelhecimento. Na juventude é tudo estético e bonito. O tempo apresenta uma espécie de um imposto e o grande mecanismo de compensação está no crescimento interior. Valorizar coisas que quando se é novo não se tem tempo de valorizar dá uma espécie de orgulho e de encantamento que compensa o facto de não sermos por fora aquilo que sentimos por dentro. Eunice Muñoz dizia com muita piada: ‘Eu acordo sempre com 18 anos e depois à medida que vou andando para a casa de banho começo a desconfiar que já não os tenho. Quando chego à casa de banho, apanho um susto. Quem é aquela mulher? Ai espera, sou eu. Já não me lembrava.’ Isso acontece sobretudo nestas profissões em que por dentro somos sempre teenagers. Mas há mais-valias da idade que têm a sua piada. No meu caso, por exemplo, começar um espectáculo com 40 anos de passado e material é um privilégio extraordinário.
É isso que vai trazer para o Coliseu? É uma estreia.
É uma estreia no Coliseu, se bem que o espectáculo tem estado em evolução há dez anos. Foi-se melhorando e acaba por ser um mostruário do melhor que eu criei ao vivo.
E como é que o grande Herman José só chega agora ao Coliseu?
Pois… Com a Amália aconteceu a mesma coisa. Foi aos 68 anos porque foi deixando andar. Trabalhava em imensos sítios diferentes e nunca calhou. No Verão passado pensei: este percurso tem sido tão giro e a experiência tem sido tão interessante, porque não fazer uma grande festa lisboeta? Fizemos o desafio à Everything is New, que marcou-se logo uma data.
Diz que costuma adaptar os espectáculos ao público. Aqui no Coliseu isso é mais difícil, não?
Não, é roda livre. Como só vêm fiéis, é tudo sem filtros. Tanto que tive um convite para televisionar o espectáculo, por parte da RTP, que declinei. A partir do momento em que tivesse câmaras, tinha de ter um tipo de cerimónia porque a coisa fica gravada. Não posso ter isso estando só entre fiéis nesta festa onde não há limites para o disparate.
E vamos ter o Herman de antigamente ou o de agora?
Sabes que ele está lá todo porque no fundo há coisas do Herman de antigamente que não morrem, sobretudo em estrada. Os grandes momentos de liberdade do Herman antigo é na estrada e isso eu recuperei no meu regresso. O de agora tem algumas modernidades acrescidas que dão um certo paladar à coisa. E o Instagram tem sido também um bom instrumento de pesquisa. É uma coisa muito recente. É fascinante.
É uma forma de chegar a novas gerações?
É e tem esta coisa magnífica de entrarem em contacto directamente comigo. As pessoas fazem perguntas, dão sugestões. Recebo mensagens tipo: meu, o que é essa música que está a tocar no fundo deste coiso? E eu lá vou à procura da música, faço print screen da capa do disco e mando. Respondem-me: tamos aí, ya, brigadão. Como se fosse uma coisa completamente normal. Mas também é verdade que comigo já aconteceu parecido. Mandei um dia uma mensagem a um dos meus ídolos, a Carole King, que me respondeu cinco minutos depois. Disse “parabéns pela tua versão, é muito mais bonita que a minha”.
Responde sempre a toda a gente?
Tento sempre que ninguém fique sem resposta, nem que seja um simbolozinho. Mas vamos imaginar: tu mandas-me uma mensagem, eu mando-te uma florzinha ou uma estrela ou uma frase. Se continuares a mandar duas, três, quatro e cinco, eu não tenho tempo para estar sempre a responder. Vejo, mas não respondo. Mas se passarem cinco ou seis vezes, à sétima voltas a levar um simbolozinho como que a dizer: estou atento, muito obrigado e as vossas palavras não são em vão. A minha relação é de grande respeito pelas pessoas que me seguem.
Mas há público mais novo que não acha grande piada ao Herman, sem sequer saber tudo o que já fez.
Mas com esse eu não contacto.
Não recebe dessas mensagens?
Nunca ninguém vai mandar uma mensagem a dizer: não sei quem tu és, nunca te vi, não te acho piada. Não faz sentido, não é?
Nem nos comentários?
Não. Os poucos comentários maldispostos são das pessoas da minha geração, é engraçado. Não tanto no Insta, mas no Face. Sempre que vejo uma coisa maldisposta, vou ver quem é e geralmente é um velho desdentado. “Já não tens piada nenhuma.” A esses nunca dou o privilégio da resposta. Agora, as pessoas novas são muito giras e muito generosas. Não tenho nenhuma espécie de hate mail. Mas com certeza que há pessoas que se estão a borrifar para o Herman José e estão no seu direito. Há é muito mais gente nova a interagir do que eu imaginei que fosse possível. Mesmo nas plateias, os meus espectáculos estão sempre cheios de juventude. É maravilhoso.
Acha que os mais velhos não envelheceram bem com o envelhecimento do Herman?
A maioria não. Há grandes diferenças entre homens e mulheres. A mulher tem uma capacidade de gostar, de amar, rir, acarinhar infinita. O meu público, nesse aspecto, é muito feminino. Depois os maridos lá vão atrás, às vezes até um bocadinho maldispostos porque eles gostam mesmo é de fado. Mas cada vez menos vou sentindo anticorpos.
Mas lida bem com a crítica?
Lido bem com a crítica quando a peço. A pessoa pergunta: o que é achaste? Quando não peço opinião, agradeço que não me dêem. Ai, não gostei nada. Pá, eu também não gosto do teu nariz ou dos teus sapatos. Não te perguntei nada, não me chateies. Agora, se tiver alguém no meu espectáculo ou alguém que pagou bilhete que não gostou... Mas isso também não deixo que aconteça. A crítica artística tem muito que se lhe diga, é uma arte de tal maneira subjectiva que é uma profissão em vias de extinção.
Até porque com as redes sociais todos têm uma opinião.
Sim, é verdade. E o que é que interessa dizerem mal do Bradley Cooper e da Gaga e do filme, se ele é um êxito? Ai acho o filme horrível e a música é uma porcaria. Está bem, fica lá com a tua opinião que o filme continua a facturar e ela ganhou o Óscar.
As redes sociais tornaram o mundo muito literal?
Isso é natural porque são as dores de crescimento. Há pouco tempo estive em Marraquexe e lembro-me que na primeira vez que lá estive os vendedores vinham atrás de nós a rua inteira. Era uma chatice. Entretanto, os turistas são tantos que eles já não têm pachorra para ir atrás de ninguém. As redes sociais é igual, as pessoas vão se cansar tanto de perder tempo a dizer: acho inacreditável, aquela mulher devia não sei quantos... Que as coisas vão normalizar.
E como é que olha então para fenómenos como o de Maria Vieira, ou como aquele que aconteceu recentemente com o excerto da sua entrevista à Sábado que gerou controvérsia por falar dos imigrantes? Como é que se encaram estas posições extremadas?
Encarando justamente e não negando a evolução da coisa. O maior erro que se pode fazer é dizer: parece impossível, nos tempos em que não havia isto é que era formidável. O presente é este, as regras do jogo são estas. Quando estou a dar a entrevista sei perfeitamente que há hipótese de sair um excerto que possa viralizar pelas razões erradas. No caso da Maria Vieira, só reage e lê quem quer. Ela tem o direito de dizer o que entender. As pessoas têm uma coisa, que é bloquear. Não gosto destas opiniões, não suporto esta lógica. Acabou. Não é como na vida real em que tu não podes correr com as coisas desagradáveis. Não podes bloquear um cancro. A rede social tem esta coisa maravilhosa: não gosto disto, xau.
Como é que teria sido com Humor de Perdição ou A Última Ceia?
Penso tantas vezes nisso. Seria engraçado avaliar. Para mim teria sido útil porque na altura três ou quatro opiniões de quem mandasse davam a entender uma realidade muitas vezes falsa. Quando suspenderam o Humor de Perdição, a administração tentou dar a entender que ninguém gostava e que não era visto e era já na altura o programa mais visto da RTP.
E aí teria visibilidade, não é?
Claro. Imagina o que era suspenderem um programa que tinha não sei quantos milhões de espectadores e que era adorado por uma quantidade de gente. Imagina o que teria sido a campanha nas redes? Portanto, há um lado fortemente positivo nisso.
Acha que hoje esses programas teriam espaço na televisão?
Se calhar não lhes davam tanta importância porque a informação é tanta. Não há tempo. Antigamente, tudo era assunto. Hoje dá-me a sensação que nada é verdadeiramente importante e quando é dura três dias.
John Cleese disse há pouco tempo que talvez hoje a BBC não passasse os Monty Python. Sente o mesmo?
Mas aí é outra realidade, que é a BBC do tempo deles, dirigida por um intelectual super-evoluído e que pôs a cabeça no prego para que aquilo acontecesse. Isso é muito relativo. Mas que eles são geniais, são. Isso ninguém lhes tira, mas é bem possível que hoje em dia o board lá dos politicamente correctos da BBC tivesse achado que não: vamos pôr isto às três da manhã algures na BBC4.
O que é que o chateia no politicamente correcto?
O que mais me chateia é sempre a hipocrisia, mas isso é uma coisa tão típica do ser humano. Os maiores inquisidores, os maiores castradores eram eles próprios muitas vezes pior do que aqueles que censuravam. Não há maior hipocrisia que a Inquisição. Aquela mulher está feliz, pumba. Vamos dizer que é bruxa e queimá-la. Sempre tivemos a capacidade de matar o gajo que está ao lado para lhe ficarmos com as coisas boas. A história da humanidade é um filme de terror. Ai que castelo tão lindo, vou lá, mato a família toda, chacino os amigos e fico com o castelo. Se não nos tivéssemos organizado melhor, hoje em dia era isso que acontecia.
E no meio artístico há essa inveja?
Claro. Toda a gente tem inveja de toda a gente. Depois uns lidam melhor, outros são mais seguros, outros mais distraídos, outros não se lembram. Eu, por exemplo, tenho inveja de imensa gente, mas depois já não me lembro de quem e fico bom. Sou uma criatura feliz graças à minha leveza intelectual.
E consensual?
Agora um bocadinho, antigamente não era nada consensual. Tinha imensos anticorpos. Agora sou um bocadinho, sim.
Mas é um lugar que procura? Eu não tenho paciência hoje em dia para grandes rupturas. Nem paciência nem tempo para estar preocupado com isso. A minha grande alegria é, por exemplo no caso dos espectáculos, acabar e ver toda a gente sair e ir feliz para casa. Mas toda a gente mesmo, não é 90%. É isso que me move hoje.
Mas essa postura não é inimiga da criatividade?
É muito mais difícil. Vou dar um exemplo: um político cai em desgraça, vamos pôr o Sócrates. Passa a ser facílimo escrever textos sobre o Sócrates. Faz-se ali meia horita só sobre o Carlos Santos Silva e o Sócrates, e agora está na Ericeira e está rico que se farta. Muito corajoso, muito forte, mas fácil. Consegue lá agora meia hora sem ser à custa de ninguém, só com material artístico consensual giro, mas com igual capacidade de fazer rir e fazer comichão. Isso é que é difícil. Para isso é preciso já muita arte.
E como é que é esse processo criativo?
É sempre doloroso. Na televisão implica horas a olhar para a página em branco até sair alguma coisa de jeito. No espectáculo é muito giro. De espectáculo para espectáculo vais inventando, vais juntando. Depois quando aquilo chega ao final fica hilariante.
E há margem para improvisar?
O improviso nunca é verdadeiramente improviso. É sempre a capacidade de ir buscar ideias, respostas, soluções, que estão na nossa memória cache em função do que está a acontecer. No último espectáculo que fiz em Almada, estava um ambiente absolutamente mágico. E no meio da perfeição aparece um bêbado. Começa aos gritos, não se percebia o que dizia. Mas não parava. Desconcentra-te. É o pior que pode acontecer. E eu digo baixinho ao microfone: “Porque é que há sempre um maluco nestas festas? É uma coisa impressionante”. E ele a gritar e a malta a rir. “Percebem agora por que é que o regime da Coreia do Norte é tão lógico e eles são tão felizes?”. E o homem continuava. “Na Coreia do Norte este homem já nem via espectáculos, nem gritava, amanhã já nem respirava”. Criei um momento hilariante.
Mais uma declaração polémica.
Basta que se escreva “Herman José defende o regime da Coreia do Norte e acha que devia voltar o fuzilamento para pessoas que interrompem espectáculos”. Tens sempre maneira de extrapolar para uma coisa negativa.
Isso não é frustrante?
Tudo o que nos incomoda é frustrante. Não é frustrante estar com gripe? É péssimo. Então e se estiveres com gripe? Esperas que ela passe. Não há nada a fazer. A nossa postura tem de ser sempre de aceitação. É a base de tudo.
Mudando um bocadinho de assunto. Vem muito para Lisboa?
Muito, vivo entre Azeitão e Lisboa. Vivo ao contrário, a minha casa é em Lisboa e o meu escritório é em Azeitão. Às vezes às quatro da manhã ainda estou a fazer experiências. No campo, posso fazer barulho. Depois, Lisboa é essencial quando tenho gravações no dia seguinte. Sou ferozmente pontual. Não me passa pela cabeça marcarem uma gravação para as 9.00 e eu chegar às 10.15 porque havia trânsito na ponte. Se me perguntarem onde é que sou feliz, é obviamente no meio do campo, preferencialmente de fato de banho a andar descalço no meio da lama com os cães de um lado para o outro.
Mas em Lisboa, onde é que gosta de ir?
Eu tenho a felicidade maior de viver numa espécie de torre de marfim com 360º de vista. Tenho atrás as Amoreiras, o Castelo de São Jorge, o Tejo à minha frente e a ponte de lado. Não preciso de ir para muitos sítios para me sentir bem, ali com Lisboa a meus pés. Geralmente saio muito para jantar fora. Não gosto de tomar copos, nunca gostei. Agora ir jantar fora a sítios, adoro. Gosto muito dos restaurantes do Avillez, há pouco tempo descobri o Yakuza, que tem um sushi fantástico, vou à Bica do Sapato. E vou ao ginásio. É a minha grande ligação a Lisboa: ginásio e restauração.
É engraçado o que disse em relação aos copos quando teve o Café Café em Alcântara.
É verdade, é um bocado contra-senso. Eu achava piada porque actuava lá. Mas o meu grande prazer no Café Café era estar na minha mesa, a mesa do patrão, a receber as pessoas mais incríveis.
Por exemplo?
O Richard Branson, a Diana Krall, todos os primeiros-ministros, todos os Presidentes, todas as Amálias. Foi uma fase inacreditável. Cheguei a ter um jantar com o Richard Branson e as Spice Girls, ainda elas não eram as Spice Girls, estavam no seu arranque.
Tem saudades desse tempo? Da mesa do patrão?
Tenho saudades da parte boa, não tenho saudades de chegar ao fim do mês e ter 70 ordenados para pagar ou alguém a telefonar a dizer que o ar condicionado avariou e são só precisos mais 23 700€. Disso não tenho saudades.