Quando é que se encontrou com Bergman? Terá sido A Meio da Noite?
Não sei, sei que já me encontrei com o Bergman há muito tempo, na minha juventude. Lembro-me do Morangos Silvestres (1957), e do Persona (1966), e de não perceber nada do Persona. Achar que elas são lindas, tudo branco, tudo lindo, que raio era aquilo. Não é que fosse menos inteligente emocionalmente, pelo menos, do que sou agora, mas não me dei tempo.
Teria que idade?
Talvez no início dos 20. Nessa altura acho que ainda estamos muito apressados. Depois, ao longo da vida, fui vendo os filmes. Houve uma situação que foi muito importante para mim, em que vi, com a minha filha, no Festival Internacional de Teatro (dirigido pelo António Lagarto), a companhia dele, com a Marquesa de Sade. Nessa altura ainda não havia legendas, metiam-se uns auscultadores e faziam a tradução ao vivo. Lembro-me de dizer à minha filha: Sara, já te contei esta história, vamos ouvir a voz destas mulheres. Ela disse “claro que sim, não vamos usar aquilo”. Fomos as únicas duas pessoas no Teatro D. Maria II a não utilizar os auscultadores.
Importavam outras coisas.
Claro, interessava-nos o som daquelas mulheres, a língua, o sueco, é como os filmes dobrados, são horríveis, portanto, pelos vistos aí já estava apaixonada pelo Bergman. Fazer um espectáculo em torno dele era algo que já me tinha passado pela cabeça, mas outros projectos surgiram, agora com a celebração dos cem anos do seu nascimento e pensei que era a altura ideal para dar mais visibilidade ao projecto e ao próprio Bergman.
Temos falado pouco sobre o Bergman?
Muito pouco, basta pensar que a Cinemateca nem sequer tem os direitos, não consegue os direitos. E é que o Bergman não é só cinema, é literatura, é teatro, é muita coisa. Não sei se se dá Bergman na Escola Superior de Teatro e Cinema, espero que sim, no teatro e no cinema.
Esperemos que sim.
Esperemos que sim, é um exemplo de longevidade, de grande obra, e uma obra muito cruzada, ele escrevia para os seus filmes, traz o teatro para o cinema e aí é que ele é diferente. É um homem do teatro, da escrita, o que lhe interessava era a palavra e a relação entre as pessoas.
Como é que se dança essa palavra?
Exacto, essa foi a minha preocupação. Como é que entro no universo do Bergman... Não quis fazer um espectáculo bergmaniano, não era isso, era influenciar-me, tal como aos meus bailarinos, e perceber o que fazer com aqueles textos, porque também os utilizámos. Os diários, guiões dos filmes, as peças, que pontos de cruzamento é que nos mexia cá dentro. Mais ou menos um mês antes de ir para estúdio tinha delineado na minha cabeça o que queria fazer. Não no sentido de um alinhamento, mas um ponto de partida que tinha a ver com a própria construção do espectáculo.
Quando ouve Bergman o seu corpo tem uma reacção? Isto é possível?
Acho que não. Vejamos, o que o Bergman trabalha já ando a trabalhar há muito tempo, as relações entre as pessoas, os conflitos, as famílias disfuncionais, não é uma coisa nova para mim. Ao querer trabalhar o lado existencialista do ser humano o Bergman já lá está. Há uma coisa nova: inclui a imagem, o cinema, pela primeira vez. Quer dizer, já na Sagração da Primavera havia imagem, mas agora são imagens dos próprios intérpretes fora do espectáculo.
De onde veio essa ideia?
Antes de ir para estúdio quis pôr-me no papel do Bergman, então quis arranjar a minha ilha. E comecei a gravá-los de uma forma muito simples, grandes planos, quis aproximar a visão do público àqueles bailarinos, um outro lugar…
...um embrião, talvez.
Exactamente, onde estivemos meramente a sentir esse lugar do cinema, foi por aí. Só pedia aos bailarinos, que estavam contra uma parede, para irem do riso à raiva. Era uma coisa mais facial. Esse início pôs os bailarinos no lugar de actores, no lugar da imagem, da face, na atmosfera do que se estava a pedir. Vimos muitos filmes.
Juntos?
Sim. Por exemplo, víamos O Silêncio (1963) da parte da manhã e da parte da tarde fazia-se toda uma improvisação sobre o filme. Essa pesquisa foi muito importante.