Ela bem tenta, mas não consegue. Sara Moreno (Beatriz Batarda) tem os sacos lacrimais sequinhos, dali já não pinga mais uma gota. O que é problemático para uma grande actriz trágica como ela, e logo em cheio numa cena fundamental do filme que está a rodar. Incapaz de chorar, fartinha de chorar, Sara toma uma decisão drástica: manda às malvas o filme, o realizador, toda a gente, e vai para casa repensar a sua vida. E por pressão do seu possessivo agente, Sara, a actriz “séria” do cinema de “autor” e do teatro “intelectual”, acaba por fazer o impensável: entrar numa telenovela. E mal sabe o que a espera. Este é o ponto de partida de Sara, a série em oito episódios que a RTP 2 estreia no domingo, às 22.15.
Bruno Nogueira está triplamente envolvido em Sara. É o autor da ideia que está na génese da série, escreveu o argumento, com o realizador Marco Martins e com Ricardo Adolfo, e interpreta uma das personagens secundárias, Paulo Prazeres, um life coach de discurso orientalista oleoso e mãos muito atrevidas, a cheirar a velas aromáticas baratas e a vígaro à distância.
Como é que apareceu a ideia-base da série: uma actriz trágica que de repente deixa de conseguir chorar? E foi concebida especificamente para a Beatriz Batarda?
Sim, foi pensada à medida da Beatriz. A premissa era basear a história no lado mais trágico da profissão da Beatriz, que é invariavelmente convidada para papéis sérios. E calhou eu pensar o que seria se um dia ela não conseguisse chorar. Ou estivesse farta de ser trágica. E daí passei para uma linha de tempo paralela em que já não é ela, é outra actriz, que na altura em que tem que chorar não consegue, desiste e escolhe uma vida aparentemente mais leve. Que se revela ser muito mais pesada do que a que já tinha.
Ela decide entrar numa telenovela, e essa decisão mergulha-a num mundo que lhe é totalmente estranho e lhe causa um choque enorme. E vocês conseguem trabalhar aqui com vários registos, da comédia à tragédia, sem dar uma fífia.
Sim, a Sara faz uma prova de esforço, uma minimaratona existencial. E isto joga muito com os preconceitos que existem, não só meus, como os do público, os de todos nós, daquilo que é o cinema de autor, a telenovela, as redes sociais como ferramenta fundamental, ao que parece, para o trabalho do actor. Toda essa realidade é-me muito distante, mas eu e o Marco mergulhámos nela porque nos fascina o rir sobre nós próprios, sobre a ideia que têm daquilo que nós fazemos, tal como desconstruir o preconceito que temos em relação a outras áreas desta profissão. Apesar de fazermos coisas relativamente diferentes, temos uma visão muito próxima daquilo que achamos que é o caminho do audiovisual, ou do que eu gostaria de ver enquanto espectador e que se cruza muito com o que ele também gostaria. Trazemos coisas muito diferentes para um objecto que depois se torna homogéneo. Acho que se notam pouco as costuras.
Precisamente, ‘Sara’ é também uma sátira certeiríssima ao meio artístico: do cinema, da televisão, do teatro...
A Beatriz trabalha mais em cinema e em teatro, o Marco mais em cinema, e eu mais em televisão e teatro. Esta mistura dá para mostrar a ideia que temos dessas várias áreas, e combinar o que sabemos delas, e mais o que as pessoas acham dessas áreas. Os clichés todos. E se cruzarmos estas matrizes todas, chegamos a uma essência, como um perfume, que toca ainda em mais gente. E temos intérpretes como a Rita Blanco, cuja personagem diz que seria incapaz de fazer telenovela, e a Rita faz telenovela. Quando se está seguro com as escolhas, não se tem medo de brincar com elas. O que me conforta mais no trabalho é estar com pessoas bem resolvidas com aquilo que fazem.
Pensaram e trabalharam também como espectadores, como pessoas que nesta altura tinham vontade de ver uma série com as características de Sara?
O grande segredo destas coisas, embora envolva muito trabalho de escrita e reescrita, – e esse trabalho de preparação foi muito importante –, é vermo-nos sempre como espectadores. Neste momento, o que me apetecia ver era esta série e isso deixa-me muito satisfeito.