Bruno Nogueira está triplamente envolvido em Sara. É o autor da ideia que está na génese da série, escreveu o argumento, com o realizador Marco Martins e com Ricardo Adolfo, e interpreta uma das personagens secundárias, Paulo Prazeres, um life coach de discurso orientalista oleoso e mãos muito atrevidas, a cheirar a velas aromáticas baratas e a vígaro à distância.
Ela bem tenta, mas não consegue. Sara Moreno (Beatriz Batarda) tem os sacos lacrimais sequinhos, dali já não pinga mais uma gota. O que é problemático para uma grande actriz trágica como ela, e logo em cheio numa cena fundamental do filme que está a rodar. Incapaz de chorar, fartinha de chorar, Sara toma uma decisão drástica: manda às malvas o filme, o realizador, toda a gente, e vai para casa repensar a sua vida. E por pressão do seu possessivo agente, Sara, a actriz “séria” do cinema de “autor” e do teatro “intelectual”, acaba por fazer o impensável: entrar numa telenovela. E mal sabe o que a espera.
Este é o ponto de partida de Sara, a série em oito episódios que a RTP 2 estreia no domingo, às 22.15. Escrita por Marco Martins, Bruno Nogueira (a partir de uma ideia deste) e Ricardo Adolfo, Sara é a estreia do realizador de Alice e São Jorge na ficção televisiva, e de Beatriz Batarda a fazer televisão em Portugal. E mescla de forma brilhante vários registos, da comédia à tragédia, passando pela sátira ao meio artístico (e em especial às telenovelas), e faz o retrato ora hilariante, ora dilacerante, de uma mulher que vai passar por uma série de provações profissionais, pessoais e familiares. E tudo com qualidade de cinema.
“Como venho do cinema e nunca tinha feito televisão, fiz uma série como se fizesse cinema. No fundo, foi como fazer três longas-metragens num tempo mais contido mas tentando manter todo o meu processo de rigor”, conta-nos Marco Martins. “A própria montagem dos episódios, fundamental para o ritmo, demorou oito meses. A preparação demorou três meses. Houve um trabalho que se prolongou no tempo, com ensaios, etc. Só se consegue esse ‘bem acabado’ com o tempo: da escrita, dos ensaios, da montagem.”
E continua: “A série parte dessa ideia de fazer uma escrita metadiscursiva, sobre uma actriz que só fazia cinema e teatro, como a Beatriz, e que nunca fez televisão cá. A partir daí, a escrita evoluiu, tornando-se uma sátira ao nosso meio cultural. E era uma oportunidade de eu trabalhar com a Beatriz numa série de registos onde normalmente não a vemos, e que eu sei que ela tem e consegue trabalhar.”
A personagem de Sara não é uma mera “dupla” de Beatriz Batarda. Tem vasos comunicantes com ela, mas o resto é ficcional. No que às parecenças diz respeito, explica Beatriz, elas “têm a ver não só com as minhas características de personalidade mas também enquanto actriz. Não só as escolhas que eu fiz em matéria de percurso, mas principalmente a maneira como eu represento. A Sara tem um sentido crítico muito forte, uma exigência com ela própria exacerbada, o que faz com que seja muito intransigente e exigente também com os outros. E eu tenho esses traços na minha personalidade, na minha maneira de trabalhar e de representar, e a Sara precisava desse tipo de entrega. Só que ela também transporta isso para a vida dela, esta crítica contínua ao que a rodeia. E que a gasta, porque ela é o seu pior inimigo. O ‘ela já não chora’ é apresentado como o mote cómico da série, mas na verdade é a sua maior tragédia”. Sara é, assim, uma vítima de si própria e dos seus altos padrões: “Pela sua exigência, por ser tão trabalhadora, por ter tanto brio, por se levar tão a sério, acaba por perder a sua capacidade lúdica, e a qualidade do espanto”, frisa a actriz.
Quanto a fazer comédia, não há drama: "Comédia é tragédia", diz Beatriz Batarda. “Claro que há coisas na comédia que são muito difíceis de ensinar e que na tragédia não são necessárias, porque a comédia exige de facto um sentido de tempo – não é de ritmo, é de tempo – e a tragédia, como o drama, consegue-se fazer à mesma mascarando essa fragilidade. A coisa que para mim foi mais difícil, e que acho que não consegui dominar bem, porque tem a ver também com a câmara e com o facto de ser televisão mesmo sendo filmada como cinema, foi a linguagem corporal. A televisão exige outro tipo de linguagem corporal que não é a do teatro ou do cinema. E a comédia ela própria tem um jogo de linguagem corporal particular. Aí andei sempre um bocadinho à procura da medida certa, às vezes acertava, outra vezes não, mas fui muito bem defendida na montagem.”
Acompanhando Beatriz no elenco, e dando-lhe óptima réplica, independentemente da duração do seu tempo de antena, estão Nuno Lopes (de partir a rir num actor egocêntrico e grunho), Rita Blanco (na melhor amiga de Sara), José Raposo, Bruno Nogueira, Tonan Quito, Albano Jerónimo (no mefistofélico agente da actriz), Cristóvão Campos, Inês Aires Pereira, Leonor Silveira, Tozé Martinho e Miguel Guilherme, entre vários outros. Sara vem revolucionar e levar a ficção televisiva nacional a um patamar criativo superior. Cabe agora aos espectadores recebê-la como merece.