São as melhores séries disponíveis na Netflix em Portugal. Tudo o que tem de fazer é sentar-se e escolher.
Glória põe Portugal no mapa – do streaming e da História do século XX. É a primeira série nacional no catálogo de originais da Netflix, a maior plataforma de video on demand do mundo, e põe uma pequena e isolada localidade portuguesa no centro da Guerra Fria (durante a Guerra Colonial). O ponto de partida para este thriller de espionagem, cuja data de estreia ainda não se conhece (deve acontecer nos próximos meses), é um antigo centro de retransmissões financiado pelos americanos, a RARET, que funcionou ao longo de décadas em Glória do Ribatejo. A ideia é de Pedro Lopes, director de conteúdos da SP Televisão, que ouve histórias deste local esquecido desde que era criança.
O argumento do Glória está envolto em grande secretismo. O quê que podemos saber da história?
É um thriller de espionagem histórico, ambientado em Portugal, mas que tem eco naquilo que foi a história mundial no período da Guerra Fria. Nunca houve confronto directo, daí o nome, e houve sempre um medo a pairar sobre toda a gente, a possibilidade de uma guerra real, atómica. E a verdade é que Portugal também teve a sua intervenção, digamos assim, através da RARET, que pouca gente conhece. Era um centro retransmissor que funcionava no Ribatejo, numa área de 200 hectares e que esteve activo de 1951 até 1996. Uma rádio, financiada pelos EUA, que emitia mensagens ocidentais para o Bloco de Leste (e o mesmo acontecia em sentido inverso, de Moscovo para a Europa e para os EUA).
Quando te cruzaste com a história da RARET, pensaste logo que daria uma peça de ficção?
Cruzei-me muito cedo porque grande parte da minha família é da rádio, trabalhou na Emissora Nacional, e desde criança que ouvia falar do Festival da Canção, da Volta a Portugal em Bicicleta e da RARET. Sempre me atraiu. Não era secreto, mas pouco se falava. Andei às voltas com esta história durante muito anos. Sabia que podia ser uma grande série de ficção. Quando houve oportunidade de apresentar o projecto à Netflix, achei que esta podia ser a história certa, porque é profundamente portuguesa mas tem um apelo internacional. Para todo o lado ficcional, procurámos personagens com alguma universalidade, mas não deixa de ser uma história profundamente portuguesa e que ainda por cima é muito desconhecida da nossa população.
Andei às voltas com esta história durante muito anos. Sabia que podia ser uma grande série de ficção.
Que histórias eram essas que ouvia em família?
Era o facto de haver uma cidade americana construída no meio do Ribatejo, numa zona bastante pobre e isolada. Tinha escola, piscina, clube de ténis, maternidade, zonas habitacionais. Uma verdadeira cidade. Curiosamente, cruzei-me depois com pessoas que estudaram na escola da RARET, que teve influência na população que ali vivia. Pela diferença do modelo de vida, digamos assim, de uma espécie de ilha americana no meio do Ribatejo. Havia um contraste muito grande entre aquilo que era a ruralidade do Portugal da época com um lado moderno, cosmopolita, que se vivia ali dentro. E também em relação a Lisboa. É isso que queremos mostrar: este país de contrastes.
Como é que foi o processo de escrita e desenvolvimento da série? Começaram a escrevê-la depois de apresentar o projecto à Netflix, ou já estava pronto?
A ideia é anterior, mas o desenvolvimento surgiu depois. E aí, sim, eu e uma equipa de argumentistas que trabalha comigo há muito tempo começámos a fazer uma investigação mais profunda, e a criar aqui uma história ficcional que agarre as pessoas. Queremos que fiquem agarrados ao ecrã e vejam os episódios de forma seguida. Mas foi necessário fazer uma pesquisa muito grande, em termos de cronologia da época, atitudes mentais da época e depois uma cronologia internacional, para que haja uma série de factos históricos que enquadrem as nossas personagens e que tornem muito mais realista esta abordagem.
Falaram com pessoas que tenham trabalhado na RARET e vivido nessa cidade americana?
Falámos, embora com pessoas que podem não ter trabalhado na época exacta em que estávamos a escrever. A RARET funcionou até aos anos 1990. Eu gosto muito de todo este processo de investigação histórica. Licenciei-me em História. Aos 21 anos, comecei a minha carreira como professor de História. Tivemos consultores históricos que nos ajudaram não só na pesquisa mas também na leitura dos guiões, para termos a certeza de que tudo o que vai para além da parte ficcional era coerente. Não tem só a ver com factos históricos, tem a ver com a atitude mental dos personagens relativamente à forma de pensar e agir da época. Foi muito interessante [trabalhar] todo esse pormenor. Aquilo que eu queria era criar um thriller de espionagem em que as personagens estivessem em desequilíbrio, entre dois universos. Portugal também estava numa guerra em três frentes nesta época [Guiné, Angola e Moçambique]. Era um período altamente complexo. O Portugal orgulhosamente só, que já na Segunda Guerra Mundial se dizia de uma certa neutralidade, não deixava de ter aliados históricos – e, apesar de nas Nações Unidas vermos os EUA a censurar Portugal por não ter feito a descolonização, havia simultaneamente uma guerra contra o comunismo na qual Portugal era um aliado dos EUA. Esse mundo diplomático é muito mais complexo, tem muito mais zonas cinzentas, e obviamente que uma série de espionagem as explora.
Escolheram esta época por ser um momento óptimo, se assim se pode dizer, do cruzamento dessas grandes narrativas históricas do século XX?
Sim, quando estamos a falar da Guerra Fria, começamos nos anos 1950, mas esta época, no caso da história de Portugal, e mesmo europeia e norte-americana, é muito interessante. É um momento em que ainda temos os regimes fortalecidos, mas que começa a existir uma contestação pública que é interessante para um personagem com a idade do João [Vidal, o protagonista, filho do Estado Novo que se radicaliza na Guerra Colonial]. Como é que ele olha o mundo e de que forma é que ele pode fazer a diferença? Num momento conturbado da nossa história, é interessante colocarmos um personagem no olho do furacão. Como é que ele se pode comportar perante os dilemas que o país e a sua geração atravessam? E como é que lida com tantos contrastes que vai vendo pelo país?
Como antigo professor de História, vê na ficção um aliado para a divulgação da história do país?
Aqui, o objectivo principal não é esse. É criar uma boa série. Mas acredito nisso. Há cada vez mais esse espaço. Percebermos o que é a nossa memória comum através das séries, através do cinema, e aí acho que pode ter uma função. Há muitos trabalhos académicos feitos nesse sentido. O History on Film/Film on History [livro do historiador norte-americano Robert A. Rosenstone, de 2006]. Se calhar, hoje em dia há muito mais gente a perceber a história da Monarquia inglesa dos últimos 80 anos através de séries como o The Crown do que por aquilo que leu. Quando fazemos uma série histórica, temos obrigação de fazer uma boa investigação, para ser o mais credível possível.
Esse contexto histórico, real, também ajuda à adesão do público? A série torna-se mais atractiva?
Na nossa dieta de media, temos opções muito diferenciadas. Posso estar a ver uma série de época como posso a seguir ver suspense, e a seguir uma comédia. Mas acredito que as séries baseadas em factos reais têm um apelo muito grande. Pelo menos para mim. Quantas vezes estou a ver séries históricas com o computador ao colo a pesquisar na Internet. Também funciona muito bem quando se consegue fazer a ponte com a actualidade, e aqui [Glória] temos um personagem com uma espécie de crise de identidade perante as circunstâncias, perante o mundo bipolarizado. Hoje em dia, vemos os telejornais e o mundo também está muito bipolarizado, não é? Temos fracturas sociais enormes. Por isso, as épocas são outras, mas os espectadores de todas as idades vão encontrar pontos de referência para os dilemas que vivemos actualmente.
Quando fazemos uma série histórica, temos obrigação de fazer uma boa investigação, para ser o mais credível possível.
Este projecto chegou à Netflix como? Não teve nada a ver com aquele concurso para argumentistas feito em parceria com o ICA, pois não?
Não. Este processo começou muito antes. Estamos a falar de anos.
Qual foi o caminho?
Tivemos oportunidade de fazer um pitch. A Netflix gostou. A relação que se estabeleceu a partir daí foi fantástica, de grande liberdade criativa. Foram três anos de intenso trabalho, entre a escrita e a produção da série. Uma série destas faz-se com outro tempo. O tempo é fundamental. Quando estamos numa plataforma que está presente em quase 200 países, sabemos que vamos chegar a diferentes tipos de público, que vamos concorrer com séries de todo o mundo. Portanto também queremos que esta seja a primeira de muitas séries a ser vista pelo público que não é português. Sentimos essa responsabilidade, de ser uma espécie de primeiro cartão de visita daquilo que se faz em Portugal e daquilo que temos a capacidade de fazer enquanto indústria cultural e criativa.
Imagino que estejam à espera de um grande impacto junto do público português. Têm também expectativa de que a série tenha lastro internacional?
Temos sempre essa expectativa, e acredito que a Netflix também tenha. Hoje em dia temos a possibilidade de ver ficção de países tão diferentes, em línguas tão diferentes… Era uma coisa a que não tínhamos acesso. E portanto acredito que podemos chegar a pessoas que não conhecem ficção portuguesa mas que o tema ou o género sejam apelativos.
Os meios de produção de uma série Netflix são muito maiores do que é habitual na ficção portuguesa. Isso teve impacto na idealização da série, na escrita do argumento, ou isso só teve impacto na qualidade visual do produto que se vai ver?
O produto final é uma conjugação de uma série de coisas: o cuidado que há na escrita, na produção, a filmar, o elenco a que temos acesso e o tempo que há de preparação para isso. Ter um orçamento mais elevado do que o habitual o que nos dá é tempo. E o que o tempo nos permite é a atenção ao pormenor. Permite ter uma escrita muito mais reflectida. Escrevemos o argumento e relemos e reescrevemos até ficarmos realmente satisfeitos. Permite também um tempo de filmagem diferente em termos de minutagem diária. Por isso, acho que temos uma série muito cuidada a todos os níveis, como uma direcção de arte fantástica; o Tiago [Guedes] fez um trabalho maravilhoso na realização; a fotografia do André [Szankowski] é maravilhosa. Acho que o público português nunca viu um produto que tivesse este nível de produção e esta qualidade.
Como é que o Tiago Guedes entra no projecto?
Depois de termos a luz verde da Netflix, houve a decisão de tentar agregar talento nacional. O nome do Tiago foi mais do que natural. Foi-lhe apresentado o argumento, ele gostou e conseguimos constituir uma equipa de grande qualidade, que cruza televisão e cinema, para fazer um produto que seja visualmente mais rico, mais apelativo, mais consistente.
A SP trabalha muito em telenovelas, que são o grosso da ficção nacional para televisão. Noutros países, são as séries que ocupam esse espaço. Vê forma de uma transição nesse sentido acontecer em Portugal? É desejável?
Os países têm todos estruturas diferentes. Há países com grelhas verticais e países com grelhas horizontais, ou seja, com novela diária em prime time. Mas, se formos ver, a RTP produz imensa ficção serial. As estações privadas têm novela, que é um produto que é conhecido do público português desde 1977, com a Gabriela, Cravo e Canela, e que tem um impacto muito grande. Mas na Europa em geral também existem. A BBC tem novela à tarde, a ITV tem novela à tarde, em Espanha há novela à tarde... Não há essa tradição que temos em Portugal, que é muito mais parecida com o Brasil, de ter novela à noite. O que eu acho que é interessante é a diversidade. Temos séries na RTP, nos privados temos novela, temos as plataformas, como é o caso da Netflix a reinvestir em Portugal... E esta directiva europeia [2018/1808, que obriga as empresas de televisão por subscrição, as plataformas de partilha de vídeos e os serviços video on demand a investir em produções dos países em que operam] pode ser muito interessante para que o cabo também comece a produzir em Portugal, que haja essa obrigatoriedade de produção em Portugal. Esta aposta da Netflix foi anterior a isso. A Netflix fez uma aposta que não se prendeu com a directiva europeia, foi de acreditar no potencial das produtoras portuguesas, dos criativos portugueses e ter nas mãos uma série que achava que podia ter sucesso em Portugal e fora dele. Mas acho que cada vez mais haverá essa diversidade, que existe e se vai alargar agora não só aos canais free to have mas também a todos os outros.