É difícil imaginar uma coisa mais dura de fazer do que Prece ao Nascer do Dia, que estreia esta quinta-feira nas salas portuguesas. Filmado numa prisão de Banguecoque e baseado na história verdadeira do boxer toxicodependente Billy Moore, o filme realizado por Jean-Stéphane Sauvaire precisou de um actor principal preparado para ser ferido em combate em nome da arte. Esse actor é Joe Cole, o inglês de 29 anos que ficou conhecido com a personagem de John Shelby na série Peaky Blinders. Como Cole explica à Time Out, não foi preciso pensar duas vezes para alinhar.
Da sua aprendizagem num alfaiate clássico de Savile Row à morte prematura, por suicídio, aos 40 anos, em 2010, Alexander McQueen, o revolucionário, iconoclasta e atormentado designer de moda inglês é retratado por Ian Bonhôte e Peter Ettedgui no documentário McQueen, que se estreia a 4 de Outubro. A história de um homem que poderia ter tido uma carreira igualmente brilhante em qualquer outra disciplina artística, que contava a sua vida e reflectia a actualidade nas suas criações e nos desfiles, sempre original e espectacularmente encenados. Ian Bonhôte falou à Time Out sobre o filme.
O Ian e o Peter são ambos interessados por moda, ou foi apenas Alexander McQueen, e a sua singularidade no meio da moda, que os levou a fazer este documentário?
Ambos, por razões diferentes, interessámo-nos por Alexander McQueen. Ambos temos algo a ver com a moda e podíamos ambos responder da mesma maneira a essa pergunta. Eu já fiz uns filmes comerciais sobre moda, mas o meu interesse não estava nesse mundo, especificamente. Não creio que tivesse ficado tão interessado e emocionado com o projecto se se tratasse de qualquer outro estilista que não o Alexander McQueen. Ele é um dos maiores de sempre na sua área e a sua história é fascinante.
Há palavras que são repetidas por vários entrevistados a propósito de Alexander McQueen, como “artista” ou “escultor”. E vocês frisam que ele não era apenas um designer de moda, mas um artista que transcendia esse âmbito, não é?
Sim, é verdade. E ele foi também uma figura de proa de um momento muito importante da cultura britânica, nos anos 90, quando surgiu uma nova geração de artistas em vários círculos. Ele conhecia-os todos e havia uma sensibilidade comum e uma grande troca de experiências entre eles. O McQueen nunca foi só um designer de moda. Por exemplo, na St. Martin’s School, ele passava tanto tempo no departamento de Fotografia como no de Moda. Isto era incomum. Era um grande criador e corresponde à definição de muita gente do que é um artista. A sua influência e a sua personalidade marcaram tanto a moda como áreas e pessoas fora dela.
Aliás, o documentário, não é só sobre as roupas, mas também sobre a forma como ele pensava e concebia os desfiles e os encenava.
Correcto. Ele também contava histórias com as roupas e, nos desfiles, ele tinha uma narrativa. E inspirava-se na sua vida pessoal, em temas da actualidade, em livros e filmes. E depois juntava tudo na sua narrativa. Foi por isso que muita gente fora do mundo da moda reparou nele, porque não se esgotava nas roupas. E era por isso que os desfiles eram tão importantes. Para ele, não bastava que as pessoas vissem as roupas. Era preciso que partilhassem toda a experiência imersiva dos desfiles, que eram como espectáculos.
No princípio da preparação do documentário, foi-vos negado acesso aos arquivos dele e os familiares e íntimos dele não queriam falar com vocês, mas isso depois foi superado. Como o conseguiram?
Sim, no início a família do Alexander McQueen estava reticente em participar e colaborar, por razões emocionais, e muita gente não queria falar, por isso tivemos algumas dificuldades. Ainda estavam sob o efeito da perda, tinham motivos pessoais para não quererem estar em frente de uma câmara a falar sobre ele. Parte do nosso trabalho foi, muito cuidadosamente e com tempo, persuadir essas pessoas de que íamos contar a história do Alexander McQueen. Não de forma reverente, porque o próprio McQueen detestava essa ideia do "reverente", mas da melhor maneira possível. E ainda por cima, a vida dele tinha sido alvo de muitos artigos escandalosos e sensacionalistas nos tablóides. Isso também preocupava as pessoas e tornou a nossa vida mais difícil. Mas já sabíamos que parte do trabalho ia consistir em persuadir os familiares, os amigos e as pessoas que o conheceram a envolverem-se no filme e que ele ia valer a pena.
Portanto, muito do trabalho que tiveram consistiu em ganhar a confiança de todas essas pessoas.
Exactamente. Foi tudo uma questão de confiança, no final.
Acho que a vossa fita deixa bem claro duas coisas: o ambiente que se podia classificar como familiar que reinava entre McQueen e as pessoas que trabalhavam com ele, e que a moda é uma actividade criativa, mas também pode ser destrutiva. Está de acordo?
Estou, sim. Tentámos mostrar isso no filme, sobretudo através da forma como o McQueen geria o seu negócio. Quando ele foi para a Givenchy, em 1997, ele não fechou a McQueen em Londres, manteve-a a funcionar. Por isso, durante quatro anos, ele dirigiu duas casas de moda, duas empresas, uma em Londres e outra em Paris, e investiu o seu próprio salário na de Londres. Era uma quantidade de trabalho colossal, que acabou por ter efeito sobre ele e quem trabalhava com ele. A pressão era enorme e ele nunca cedia, porque como diz a certa altura, tinha muitas pessoas a trabalhar para ele com famílias e hipotecas para pagar, e era preciso produzir, produzir sempre. Na Givenchy e na McQueen, faziam quase 20 desfiles por ano. E isso teve o seu preço na saúde física e mental dele. Acho que o negócio da moda exige demasiado às pessoas. E no caso do Alexander McQueen, foi demais.
A vida do Alexander McQueen está presente por toda a parte na sua obra. E é invulgar para um designer de moda usar o seu trabalho como uma forma de autobiografia, a exemplo de um escritor ou de um cineasta.
É muito invulgar, mas quando vemos de onde ele veio, quem ele era e como entrou para o mundo da moda, é também muito pouco vulgar e extraordinário. E foi isso que também nos atraiu, o facto de ele ser como que um intruso nesse mundo, um outsider; e o respectivo choque cultural que daí resultou. E ele também se intrometeu no próprio conceito tradicional do que devia ser um desfile de moda. Ele chocava as pessoas com os seus desfiles, porque eram radicalmente diferentes daquilo a que elas estavam habituadas. Nunca ninguém tinha abordado na passadeira temas como o abuso sexual a que haviam sido sujeitos, ou o que tinham sofrido quando eram novos. E ninguém tinha lá mostrado como estava insatisfeito e zangado com a indústria em que que trabalhava. E os desfiles também podiam basear-se nos seus sonhos, ou nos seus sentimentos para com o mundo em que vivia. E cada desfile era diferente, a variedade era extraordinária. Ele era sempre muito empenhado e original em tudo o que fazia, das colecções aos desfiles. O Alexander McQueen tinha um espírito criativo único.
Este filme não se destina apenas às pessoas da moda, mas também a um público mais vasto?
Nunca quisemos fazer um filme de moda, mas sim um filme sobre um artista extraordinário que trabalhava no mundo da moda e que se exprimia através das roupas. O filme foi construído como uma narrativa normal, as pessoas que entrevistámos são quase como personagens, e a música, a estrutura e a ideia de tragédia grega que lhe está implícita foram trabalhadas como numa ficção. Tudo isto faz dele uma experiência emocional completa. As pessoas podem ir vê-lo, mesmo sabendo pouco, ou até nada, de moda. É um filme sobre arte. A moda é uma arte e o Alexander McQueen era um artista no auge do seu talento, com todas as suas fraquezas e com tudo o que contribuiu para o derrubar tão prematura e dramaticamente.