Black Mirror
Blair Raughley
Blair Raughley

“Sentimos que podemos fazer qualquer coisa”

Depois de um filme interactivo, chegam finalmente à Netflix os novos episódios de "Black Mirror". Fomos a Londres conversar com os criadores da série que nos dá medo do futuro.

Cláudia Lima Carvalho
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Estamos num quarto de hotel em Soho, Londres. Apesar de na rua estar um calor pouco habitual para a capital inglesa nesta altura, Annabel Jones, produtora executiva de Black Mirror, está coberta em toalhas, tal é a temperatura do ar condicionado. A meio da conversa, levanta-se. “Não sei como desligar isto”, diz, ao mesmo tempo que carrega em todos os botões. “Vai acontecer um episódio de Black Mirror aqui: vais carregar num botão e de repente o chão enche-se de chamas”, brinca Charlie Brooker, a mente por detrás da série. É assim desde a estreia em 2011 no Channel 4 – acabou por ser cancelada na segunda temporada, mas ganhou nova vida e fôlego na Netflix. O que Brooker faz é o que nós também já fazemos: pensar em Black Mirror quando algo de estranho acontece com alguma tecnologia. A diferença é que é ele é o responsável por nos pôr a pensar assim. Ele diz ser neurótico, mas ai de quem diga que é pessimista. Ou melhor, ai de quem diga que Black Mirror é uma série negativa ou com medo do futuro porque aí tanto Jones como Brooker atropelam-se para listar todos os episódios com mensagens positivas. Como garantem que vai acontecer nesta quinta temporada de apenas três episódios.

O que podemos esperar desta temporada?
Anabbel Jones: Miley Cyrus.
Charlie Brooker: Isso. A Miley Cyrus a fazer coisas que nunca a vimos fazer. Tentámos mesmo não dar nada porque queremos que as pessoas se surpreendam o máximo possível. Os episódios são outra vez muito diferentes. São familiares a Black Mirror, mas igualmente muito diferentes daqueles que já fizemos. É uma resposta estranha.

Mesmo os trailers não mostram quase nada.
CB: Pois não, não queremos dar demasiado porque isso tiraria muita da piada. Seria desembrulhar o presente antes de o oferecer.

Já que falam na Miley, como é que escolhem actores para a série?
CB: Com a Miley foi sorte. Escrevemos o episódio e depois pensámos em quem é que poderia interpretar uma estrela pop internacional de forma convincente. Num mundo ideal teríamos alguém como a Miley Cyrus. Mas achámos logo que não a íamos ter, mas também não tínhamos nada a perder ao enviar-lhe o argumento. Pensámos: ela vai dizer que não ou nem o vai ler. Mas a verdade é que leu e disse que sim. Ficámos muito surpreendidos. Ela não só conhecia a série como gostava. Tivemos uma conversa via Skype. Ela tem os pés bem assentes no chão, é muito inteligente e muito divertida, tem um bom sentido do absurdo. Mas não é só sorte, também temos bons directores de casting. Se olharmos para todos os episódios acho que sempre conseguimos encontrar actores interessantes.

Sempre que se fala em Black Mirror fala-se de tecnologia, mas eu diria que a série é mais sobre a condição humana. Se não fosse a tecnologia, seria outra coisa…
CB: Concordo em absoluto com isso. Na série usamos a tecnologia como séries como Twilight Zone usam o sobrenatural. Usamo-la para permitir que os personagens escavem o seu buraco. É sempre sobre o problema que os personagens enfrentam. A tecnologia não é a vilã, mas a ferramenta poderosa que as pessoas usam indevidamente.
AJ: É interessante que às vezes quando definem a série como sendo sobre tecnologia parece algo alienado ou puramente ficção científica. Se olharmos, por exemplo, para Smithereens, o novo episódio com Andrew Scott, não há qualquer elemento futurista. Ele acontece no passado [para o habitual em Black Mirror]. Não há qualquer ficção científica. É sobre como se vive hoje e como é que gerimos as nossas relações num mundo moderno. É muito real e cru. E acho que termos mantido este episódio pequeno em termos de tecnologia torna a série mais impactante.

E quando é que é demasiado? Ou não têm tabus?
AB: Demasiado futurístico?
CB: Demasiado extremo?

Extremo. Porque parece que procuram sempre o pior cenário possível.
CB: Nem sempre. Lembremo-nos de “San Junipero” [quarto episódio da terceira temporada].
AB: “Nosedive” [primeiro episódio da terceira temporada].

É verdade, mas na maior parte das vezes os episódios são mais negros do que optimistas.
CB: Sim, muitas vezes. Mas acho que as únicas alturas em que dizemos que é demais é quando sentimos que é demasiado dentro dessa história. Se olharmos para episódios como “The National Anthem” [primeiro episódio da primeira temporada], “White Bear” [segundo episódio da segunda temporada], “Crocodile” [terceiro episódio da quarta temporada] ou “Metalhead” [quinto episódio da quarta temporada], é verdade que são bastante extremos e assustadores. Ou seja, não fugimos desse tipo de coisas mas felizmente não é objectivo em si próprio. Recentemente fizemos “Bandersnatch” [o filme interactivo] que é bastante assustador. Em muitos momentos é como um filme de terror. A verdade é que tentamos equilibrar isso com tons, configurações e sentimentos ligeiramente diferentes. Eu não assumiria à partida que vamos levar sempre um murro na cara.
AJ: É interessante pensar, por exemplo, no “The National Anthem” como um extremo. Era tudo sobre o apetite do público por humilhação, particularmente sofrida por celebridades ou pessoas em posições de autoridade. Mas no final, quando todos se juntam no pub para ver o espectáculo, estavam todos enojados consigo mesmos. E nesse sentido é um pouco mais optimista.
CB: Mas isso acontece provavelmente por ele estar a fazer um mau trabalho [neste episódio o primeiro-ministro britânico é obrigado a ter sexo com um porco].
AJ: [Risos.] Digamos que há sempre uma grau de realismo nos filmes e o extremismo nunca é o propósito.

Sendo uma série de antologia [todos os episódios têm histórias e elencos diferentes], têm mais liberdade criativa?
AJ: Sim, completamente.
CB: Significa que nunca nos aborrecemos. Não quer dizer que não temos desafios, mas nunca nos cansamos de fazer a série porque nunca é a mesma coisa. Não sentimos que estamos presos a uma rotina. E acho que temos sorte porque não levamos com as pessoas super chateadas, como temos visto recentemente, porque os seus personagens favoritos seguem por caminhos diferentes do que esperavam.

A pressão é diferente?
CB: Sim, até porque acho que já é assumido que não vais gostar de todos os episódios. Seria estranho até. Quando as pessoas listam os seus episódios preferidos, a ordem costuma variar muito. Há alguns episódios que aparecem com frequência no topo das listas e há outros que tanto estão no fim como nos preferidos. Temos reacções extremas das pessoas. E isso faz parte da receita de fazer uma série deste género. Podemos fazer episódios mais pequenos, a preto e branco, quase sem diálogo, interactivos. Sentimos que podemos fazer qualquer coisa.
AJ: É como se estivessemos a inventar a toda a hora.
CB: Como se não tivéssemos ideia nenhuma do que estamos a fazer.

Vão para algum lado mas não sabem para onde.
CB: Sim, idiotas sem noção.
AJ: Isso é bom, é libertador.

E podemos esperar mais episódios interactivos?
CB: Nunca dizemos nunca.

Como foi a experiência?
CB: Foi muito, muito difícil. Originalmente, “Bandersnatch” fazia parte desta quinta temporada e essa é uma das razões porque agora só há três episódios. Fizemos tudo ao mesmo tempo, mas tornou-se óbvio que fazer “Bandersnatch” era como fazer uma temporada inteira. Além disso, era tão fora do normal e não tínhamos a certeza se funcionaria tecnicamente em todos os dispositivos que pensámos que faria mais sentido fazer isso individualmente e depois fazer o resto. Mas também foi uma experiência muito interessante porque fizemos o episódio em conjunto com a equipa de tecnologia da Netflix. Na altura, estávamos sempre a dizer que nunca mais faríamos nada assim, mas no final… Ainda por cima, começamos a pensar que se fizéssemos aquilo outra vez poderíamos fazer isto ou aquilo e de repente ocorre-nos outras coisas.

Mas a Annabel chegou a dizer que não estavam nada interessados quando a Netflix vos abordou com esta ideia. Porquê?
AJ: Acho que tivemos medo que parecesse apenas um artifício. Como se de repente puséssemos uma camada interactiva por cima e nos preocupássemos apenas com o truque, criando uma distância entre o espectador e os personagens. Tinha medo que existisse esta barreira e que o envolvimento pessoal de assistir passivamente fosse destruído. Por isso dissemos não no início. Mas depois o Charlie apareceu com uma ideia muito inteligente que só poderia ser feita através da interactividade. A ideia era não só ter o elemento interactivo como conseguir expô-lo e subvertê-lo. Pegámos em todas as formas de linguagem e ora expusemos os personagens, ora o espectador. A experiência tornou-se cada vez mais irresistível e o espectador acabou por se sentir cúmplice pela pressão que sentia ao ter de tomar decisões para o protagonista. É um momento muito único, quando sabes que conseguiste esse envolvimento emocional. Saber que muitas pessoas que viram “Bandersnatch” diziam que só queriam dar um final feliz a Stefan Butler mostra-nos que fomos bem sucedidos em manter essa ligação.

E ainda se surpreendem quando alguma coisa que imaginaram acontece na vida real?
CB: Sim. Quer dizer, fico menos surpreendido agora porque parece estar sempre a acontecer. Até fico desiludido se não acontece.
AJ: É bom para nós.
CB: Sim, parece ser boa publicidade gratuita.

Mas deve ser estranho.
CB: Às vezes é aterrador. Como no caso de “The National Anthem” – esse foi o mais estranho. Uma semana antes de saber as notícias de David Cameron, houve um site que escreveu sobre os episódios de Black Mirror que se poderiam tornar realidade no futuro e claro que ignorou o “The National Anthem” porque seria ridículo. E de repente, uma semana depois começou a circular o rumor que eu acho que não é verdade. [Em 2015 uma biografia de Cameron contou como este, nos seus tempos de estudante, terá enfiado “uma parte da sua anatomia privada” na cabeça de um porco morto como ritual de iniciação de uma sociedade em Oxford]. Isso foi o momento mais estranho de sempre. Acho que depois disso posso morrer, todas as apostas são infundadas. Não faço a menor ideia.

Vêem a série como sendo política também? Olhando para a actualidade e para a influência que a tecnologia tem nela…
CB: De alguma forma, já abordámos o tema dos políticos populistas no “The Waldo Moment” [terceiro episódio da segunda temporada]. Não tendemos a olhar para as notícias ou para um político específico e ver nisso uma história para Black Mirror. Mas é verdade que estamos a passar um período de imensa transformação à medida que nos habituamos ao uso de ferramentas poderosas. Ao longo do tempo a civilização foi melhorando, acho que temos de ter esperança e acreditar que, em última análise, essa tendência vai continuar.
AJ: Eu acho que a nossa espécie está interessada o suficiente em encontrar uma maneira de se preservar. Eu sou optimista.

Com a ajuda da tecnologia, os fãs também se sentem mais próximos dos criadores e sentem muitas vezes que têm poder, exercendo pressão. Vimos isso acontecer agora com A Guerra dos Tronos. O que pensam disto?
CB: Como criador, eu sinto-me aliviado de alguma forma, mas tenho mesmo muita pena por eles [David Benioff e D. B. Weiss, criadores de A Guerra dos Tronos], espero que não tenham ficado magoados com isso. Mas acho que devem olhar para isto como um testemunho do quão fortemente as pessoas se sentem em relação à série que criaram. Mesmo assim, consigo compreender algumas das queixas dos fãs quando dizem que ficaram desiludidos. Eles ficaram com uma tarefa muito difícil em mãos quando decidiram que iam acabar a série com tantas pontas soltas. Dito isto, acho que a cena final, sem fazer quaisquer spoilers, é tão d’A Guerra dos Tronos do início. Acho que foi uma bela forma de acabar. E é divertida. Mas as pessoas podem dizer que não gostaram, está tudo bem com isso, claro que se podem expressar. Mas quando exigem às pessoas que o fizeram que o façam de novo, isso é um disparate. Eles não acreditam mesmo que isso vai acontecer. Estão só zangados.
AJ: Provavelmente zangados porque a série chegou ao fim.
CB: Sim, é o primeiro dos sete estados do luto, eventualmente chegarão à fase da aceitação.

A Time Out viajou a convite da Netflix

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