Dois mil e vinte foi um ano de ruptura. Para toda a gente que viu vidas, relações e corpos mudarem e extinguirem-se de um momento para o outro. Mas ainda mais para Ana Moura. Oito anos antes, tinha gravado um dos mais populares discos de fado das últimas décadas (Desfado, 2012); era uma das intérpretes portuguesas com maior alcance internacional; ouvia os elogios e cantava com ícones da pop e do rock mundial como Prince ou os Rolling Stones; aqueles que a rodeavam diziam que nada tinha a provar, nem mais nada a alcançar. Porém, sentia-se inquieta. Essa inquietação traduziu-se em “Vinte Vinte”, tema inspiradíssimo, onde ela se encontrava com Branko e Conan Osiris, e a canção de Lisboa se tornava electrónica e urbana, inspirada pelo sul global e pelos ritmos da sua diáspora. Podia ter sido um episódio único, à parte do resto da sua história. Só que não. Foi o gatilho para deixar a editora Universal, trocar de agente e rodear-se de novos colaboradores. Muitos duvidaram dela, mas não vacilou. Irredutível, passou os últimos anos a construir esta Casa Guilhermina, declaração de intenções, testemunho de coragem e vitalidade artística, disco de ruptura.
Claro que esta história não é tão simples nem linear como o parágrafo anterior parece sugerir. Por um lado, há muito que a fadista apontava novos caminhos, mais pop, para o género. Por outro, a ligação e o interesse pela África lusófona não são apenas de agora e fazem parte da sua biografia – a avó materna, Guilhermina, era angolana e a mãe também nasceu lá. E não é só a cantora que tem ascendência africana: há quem defenda que o fado veio de África, ou pelo menos tem lá raízes e uma história muito anterior ao seu branqueamento pelo Estado Novo. Não obstante, originalmente, o sétimo registo longo da fadista ia ser muito diferente. “Andava numa roda viva, ia directamente dos palcos para o estúdio. Quando me disseram que tinha de gravar um disco, porque já não gravava há imenso tempo, decidi mandar uma mensagem no Instagram a um produtor que adorava, o Emile Haynie, que trabalhou com imensos cantores que admiro, como a Lana Del Rey. Ele respondeu positivamente”, conta Ana Moura, durante a festa de apresentação e pré-escuta do álbum no Cinema São Jorge, com uma espécie de quem é quem das artes e da música moderna portuguesa sentada na plateia. “Veio a Portugal e gravámos as bases de um disco, com músicas que me foram sendo oferecidas por compositores, incluindo alguns que já tinham trabalhado comigo.”
É agora que o enredo se complica. Com as bases gravadas, o produtor voltou para os Estados Unidos, onde supostamente ia continuar a trabalhar no disco. Até aqui tudo normal. “Só que ele entretanto deu ghost, como se costuma dizer. Desapareceu. Ao princípio fiquei tristíssima”, continua Ana. “Mas, na verdade, sentia que não era aquilo que eu queria fazer. Sentia-me seca que nem passa de uva, como diz o Conan Osiris [numa das letras do disco]. Lembro-me de estar em estúdio e sentir um vazio enorme e uma tristeza tão grande que fui à casa-de-banho e comecei a cantar o ‘Nossa Senhora das Dores’, que é um fado da minha madrinha de fado, a Maria da Fé. Mas assim em tom de lamento. Normalmente este tema é um pouco mais ritmado, e eu estava a cantar aquilo quase como um mantra, para que se apoderasse de mim. Entretanto saí da casa-de-banho, cheguei ao estúdio e pedi ao Ângelo [Freire, que também toca em algumas faixas deste álbum] para me acompanhar enquanto continuava a cantar, e todos começámos a sentir que devíamos gravar aquele momento.”
Hoje, quando olha para trás, reconhece que perder aquele disco (e o respectivo produtor) foi o melhor que lhe podia ter acontecido. “Pedi ao meu manager para me dar mais tempo, para não me marcar tantos concertos, para ter tempo para mim. E comecei a sair aqui em Lisboa, que era algo que até então não tinha muito tempo para fazer. Conheci primeiro o Conan Osiris e a música dele, depois fui às noites Na Surra [da Enchufada] e conheci este incrível produtor que é o Pedro da Linha, e mais tarde, depois de um concerto, muito por acaso, conheci o Pedro Mafama e a música dele. E aqui dentro começou a crescer um bichinho e uma vontade de juntar todas estas pessoas que me faziam sentir representada – enquanto pessoa e musicalmente. Todos tinham os seus projectos, as suas coisas, mas de certa forma a covid deu-nos a possibilidade de estar todos parados e não estarmos a ser estimulados por coisas exteriores, e convidei-os para virem viver para minha casa”, lembra. “Eles vieram passar uma temporada em minha casa e começámos a compor. Livremente. Sem pensar em géneros. Eu sou fadista e amo ser fadista. Mas muitas vezes o facto de nós pertencermos a uma coisa pode também ser opressor, porque nos baliza.”
Sem grande surpresa, nesta Casa Guilhermina não há balizas. Num momento estamos a ouvir um fado tradicional, a seguir um semba, de repente há uma batida de kizomba, dança-se um fandango e ouvem-se outras músicas portuguesas e do mundo lá ao fundo, em loop – por vezes, escuta-se tudo isto ao mesmo tempo. É fácil imaginar outras pessoas a tentarem misturar estes sons e elementos díspares e a espalharem-se ao comprido, mas Ana Moura nunca falha e a sua voz une todas estas músicas como se fossem, como se sempre tivessem sido, uma só. Uma boa parte do mérito é da própria, das qualidades da sua voz, das longas relações com todos estes géneros e ritmos, que ora fazem parte da sua herança – no caso das músicas africanas, que cresceu a ouvir com a avó e a dançar com as primas, no bairro do Checul, em Quarteira – ora passou uma vida a cantar – o fado, claro – ou a ouvir – as músicas electrónicas e urbanas contemporâneas. E soube rodear-se de pessoas no mesmo comprimento de onda e igualmente talentosas. Primeiro Conan Osiris, que esteve na génese do álbum, canta numa faixa e escreveu outras, e Pedro da Linha, creditado como produtor e o principal responsável pelo novo som; e mais tarde Pedro Mafama, que desempenha os papéis de director criativo, co-produtor, letrista e muso, além de acompanhar Ana Moura num dueto, “Agarra em Mim”, um ponto alto desta empreitada.
Além de Ana Moura, os dois Pedros e Conan Osiris são os principais responsáveis pelo seu novo som e confiança. Mas não são os únicos colaboradores e participantes no disco. João Bessa misturou tudo e co-produziu algumas faixas e há versos de Kalaf Epalanga e Toty Sa’Med, mas também de Pedro da Silva Martins dos Deolinda, que escreveu o poema de “Corridinha” e, com o irmão Luís José Martins, compôs a música, um fado com balanço pop que não estaria fora de lugar em registos anteriores da cantora. A própria Amália mora aqui, numa “Estranha Forma de Vida” com instrumentação fantasmagórica, versão retintamente portuguesa da música assombrada e nostálgica de um Burial e das hostes da Ghost Box. Além da guitarra de Ângelo Freire e dos coros de Pedro Mafama foi integralmente composta por Pedro da Linha, que garantiu os restantes instrumentos – cordas, baixo e percussão. É outro dos picos criativos e emocionais de Casa Guilhermina. Pedro da Linha ficou “muito contente por a Ana ter acreditado nesta visão para o tema”. Nós também. “É complicado pegar num clássico destes e trazer para este universo de uma forma que respeite a artista original e o disco que estás a fazer”, confessa o produtor. “Mas acho que faz todo o sentido”.
Não é só em “Estranha Forma de Vida” que se escutam palavras que Amália imortalizou. Casa Guilhermina abre com “Janela Escancarada”, um fado arabesco e a primeira canção que Pedro e Conan Osiris fizeram com Ana (“os ritmos foram escolhidos com base em conversas que íamos tendo, sobre o som que ela queria”, diz Pedro da Linha). Segue-se “Mázia”, semba mestiço composto e escrito por Ana Moura, que é acompanhada pelas mulheres da sua família nos coros, espectrais e magoados. E à terceira faixa ouvimos uma “Calunga” que começa por ser o mesmo fado que Amália Rodrigues cantou, mas cedo se transforma noutra coisa, e mais diferente fica quando Ana Moura diz “até já” a Amália e desata a cantar Bonga – tudo na mesma canção. “Isso é uma coisa importante que se fez aqui, juntar um fado com uma música em kimbundu angolano”, confessa Pedro Mafama. “Este fado da Amália já era quase uma canção afro-portuguesa e juntá-la com uma letra em kimbundu pareceu-me mesmo o círculo perfeito. É quase o fado a regressar às suas origens. Por isso, esta música é uma peça-chave do disco.”
“Andorinhas”, o primeiro single que ouvimos, ainda em 2021, é outra canção que aponta para África, mas neste caso para o Magrebe e para “o Algarve mouro de outrora”, segundo Pedro Mafama. “Fazer essas pontes com o nosso passado e procurar nele o que há de presente é uma coisa essencial e que está a ser feita neste disco, em músicas como esta, a ‘Arraial Triste’ e outras. Propostas completamente portuguesas, mas abertas àquilo que significa ser português para mim e para a Ana. Para nós, ser português é ser mestiço. E isso é uma parte muito importante deste disco. Porque a Ana tem essa própria história”, explica. A cantora concorda, mas tem algo a acrescentar. “Foi essa canção que me deu a força para dar os passos que tenho dado nos últimos tempos. É uma canção mesmo empoderadora”, considera Ana Moura. “Quero conquistar um lugar mesmo pop. Sem qualquer tipo de vergonha, assumir que me dirijo para aí. Estou crente no meu futuro.”