Maria Reis
© Beatriz BlasiMaria Reis
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Maria Reis: “Muitas vezes não sei o que estou a fazer”

Este ano, Maria Reis deu-nos o ‘Benefício da Dúvida’. Não conseguimos parar de ouvi-la.

Luís Filipe Rodrigues
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Desde 2011 que acompanhamos, nestas páginas e fora delas, a carreira de Maria Reis. Com a irmã Júlia, nas Pega Monstro; com o primo Lourenço Crespo, em 100 Leio; com os amigos de infância e adolescência, n’Os Passos em Volta; até fora da Cafetra e do lugar de compositora, durante a sua breve passagem pelos Gala Drop; e nos últimos anos a solo, fomos escutando e escrevendo sobre a sua música. Vimo-la e ouvimo-la a crescer, a alargar horizontes, a apurar a lírica e a composição, a impor-se como uma das melhores escritoras de canções que este país já teve, independentemente do género. Benefício da Dúvida, o quarto registo a solo, entre mini-álbuns e EPs, é o mais recente marco de uma carreira que não dá sinais de perder o fôlego, a inventividade, a relevância.

Houve quem lhe chamasse um “álbum pós-traumático”, antes sequer de o podermos ouvir. Mas não é isso que as suas sete canções revelam. E a própria Maria Reis não concorda com a adjectivação. “Acho que [se] escreveu isso por eu falar muito sobre a minha instabilidade emocional”, sugere Maria, nos primeiros minutos de uma longa conversa. “Mas não acho que seja pós-traumático.” Não parece sê-lo, concordamos. Foi, porém, feito no limite, e até possivelmente à beira de um burnout que ficou por diagnosticar. “Não quero estar a dizer que estive mesmo ou que estava à beira de um burnout quando no fundo nunca fui diagnosticada com isso. Mas de facto estava a sentir bastante a pressão.”

A síndrome de burnout é, de um modo geral, incompreendida. Não é só cansaço, é uma sensação de exaustão, de alienação do trabalho e das relações, de negatividade e cinismo. É reconhecida e estudada há décadas, mas parece cada vez mais generalizada. Há quem proponha que cada fase do desenvolvimento do capitalismo traz consigo novas patologias associadas à exploração e aos desequilíbrios laborais. Esta é a doença do actual momento, da precariedade institucionalizada, do capitalismo tardio. Não é, por isso, improvável que Maria Reis – como tantas pessoas da sua geração – estivesse em burnout. Honestamente, depois dos últimos dois anos, seria até menos provável que não estivesse. A vida e os trabalhos não estão fáceis para ninguém desde o início da pandemia. Muito menos para os artistas.

Tu vives da música, dos concertos. Durante a pandemia, primeiro, não pudeste tocar. Depois, quando voltaram os espectáculos ao vivo, as coisas estavam muito mudadas. Como é que conseguiste navegar estes dois anos?
Pá, tive de mudar algumas coisas. Não só porque estava tudo muito mais difícil em termos de budget, mas porque com o confinamento eu estava a tocar sozinha e não com a banda. Aliás, no primeiro confinamento não estava a tocar, ponto. Porque estava mesmo a achar que não valia a pena. Mas depois surgiu o concerto da Gulbenkian e motivou-me bastante. 

Foi um ponto de viragem?
Sim. A partir daí tive a sorte e também a vontade de fazer concertos, mesmo que fosse para dez pessoas, ou com quadradinhos no chão, ou com máscaras. Tentei sempre relativizar isso. E perceber que quando as pessoas nessa altura iam a concertos era porque queriam muito ir. Porque não era só pôr o bebé na babysitter. Agora era um risco de saúde pública. Quis respeitar isso e fazer um espectáculo em que conseguisse chegar às pessoas e levá-las para um sítio fora daquela realidade tão absurda. Tornar a cena uma experiência mais espiritual do que uma coisa solene, com as pessoas sentadinhas, cada uma na sua cadeira, com dois lugares de distância. Isso é tudo muito burocrático e pouco charmoso.

É o oposto da tua música.
Mas ganhei muita bagagem de concertos, e de falar com as pessoas, e de estar presente. Até porque passei muito tempo sem o Leo [Bindilatti, vulgo Rabu Mazda], que é o meu técnico de som e produziu o disco. Agora vem sempre comigo, mas no primeiro confinamento não. Fazia-se de comboio e de carro tudo sozinha. E quando chegava ao sítio era obrigada a interagir, porque senão enlouquecia. E essa capacidade de comunicar com desconhecidos é fixe. Não só para a minha vida profissional, mas também a nível pessoal.

Passaste esse tempo sozinha, mas agora para compensar tu e os outros artistas da Cafetra têm andado juntos um pouco por todo o país, na tour Noite Fetra e Amigos.
Sim, fui em duas sessões. Acho que já fizemos seis… Não tenho a certeza.

Como é que isso começou? E como é que tem corrido?
Tivemos essa ideia durante o confinamento. Queríamos entregar uma proposta à DGArtes e tivemos a ideia de pegar na Noite Fetra e levá-la para o resto do país. Marcar os concertos e fazer tudo. O que está a acontecer agora é isso, com todas as flexibilidades. Acho que o mais fixe, além de irmos aos outros sítios, é quando vamos lá chamar alguém local. Está a ser uma pesquisa interessante e que põe as coisas num grande prisma. Porque está tudo muito centralizado e não há grande comunicação entre as regiões.

De todo.
Tem sido interessante perceber as diferenças entre a região Norte e a região Sul. É muito mais fácil no Norte arranjar concertos do que no Sul. Mas depois também temos muito interesse em perceber o que é que existe. É frustrante, mas às vezes somos surpreendidos pela positiva. Há pessoas que respondem logo que sim, entusiasmadas. E pessoas que estão a abrir espaços novos, pessoas que vão de Lisboa para outros sítios. Por exemplo, a miúda que abriu o Em Direita, onde tocámos em Viseu, era de Lisboa, mas fartou-se e foi para outro sítio. Porque não é sustentável viver e estar tudo concentrado em duas cidades.

Tem havido público nesses concertos?
Ya, ya. Às vezes mesmo quando não estamos à espera acaba por haver gente. Em Ourém, por exemplo. Nunca lá tinha ido e estava bué malta. Sei lá. Ou numa aldeia chamada Cadima, em que um gajo também de Lisboa decidiu criar uma associação, uma espécie de Casa Independente rural. E tinha lá malta da aldeia ou de sítios à volta. Aquilo é perto de Coimbra, então havia ali uma movida qualquer. É fixe não ser tudo em Lisboa ou no Porto.

Parece-me um trabalho mesmo importante. Olhando pelo Instagram e vendo as datas, lembra-me um bocado aquelas sessões do tempo do PREC em que tinhas o Zeca, o Fausto, quem calhava, a ir a uma terra e a tocar onde podia. Foi algo que se perdeu.
E agora só existe porque está aqui a ser feito um levantamento, um inventário de espaços. Porque não há comunicação. E não é só a gente ir tocar lá, o ideal era aquilo existir com frequência, com bandas e artistas locais, sempre a bombar e inserido no roteiro nacional. Mas isso não existe. Só se consegue fazer uma digressão destas com o apoio de uma entidade como a DGArtes. Porque se fosse com entradas, não dava. Isto é uma despesa. Não há aqui pretensões de lucrar. No fundo o que a gente está a fazer é serviço público.

“Não é confortável mostrar as falhas, mas pareceu-me o mais honesto”

A prosa está boa, mas já o gravador está ligado há meia-hora e ainda mal se falou do disco. Não pode ser. Até porque Benefício da Dúvida tem muito que se lhe diga. É um registo sujo e bravo, música vérité, sem medo de assumir as imperfeições e celebrar os erros. É um disco de Maria Reis, mas é mais do que isso. Até porque tem “a participação especial da Júlia” Reis, a baterista das suas antigas bandas, agora com um pandeiro nas mãos, a harmonizar e a completar as faixas que a irmã escreveu. Não é bem um disco de Pega Monstro – apesar de Maria defender que “tudo o que faz é Pega Monstro” – mas lembra essa banda-pedrada-no-charco. Oiça-se a primeira faixa, “Lobisomem”. Maria Reis sozinha, amparada pelo feedback, munida de uma guitarra eléctrica distorcida, a uivar à beira do abismo. É grunge, é punk rock. Temos de dar o braço a torcer: é Pega Monstro vintage.

O Benefício da Dúvida é o disco mais cru e com um som mais sujo que gravas em muitos anos. Porque optaste por este som mais grunge, à falta de melhor palavra?
Não sei se foi muito pensado. Eu tento perceber o que estou a fazer, mas muitas vezes não sei o que estou a fazer [risos]. Foi só uma coisa natural que acabou por acontecer. O que eu conseguia entregar era aquilo e isso parecia-me mais honesto do que outra coisa qualquer. Interessava-se que a produção fosse fiel àquilo que a música soa na realidade, e falei disso com o Leo e com a Júlia. Admito que não é confortável mostrar as falhas da voz, de tudo. Mas pareceu-me o mais honesto, no momento em que estava. E continua a parecer.

Por falar na Júlia, como é que ela aparece aqui?
A Júlia encontrou o pandeiro, o instrumento, um bocado por acaso. Mandou vir um. Começou a tocar. Voltou a tocar. Depois ouviu uma gravação de uma música nova que eu tinha, a “Desaparece”, ao vivo em Beja, começou a tocar por cima o pandeiro e percebeu que aquilo ficava mesmo bem. Então veio falar comigo: “Bora experimentar fazer isto.” E fiquei tipo “nice, nice”, “boa, boa”. Depois, fiz uma residência em Viseu e a minha irmã vive numa aldeia lá perto, então veio ter comigo. Não tocávamos desde 2018, mas quando começámos foi como se não tivéssemos parado. Foi emocionante.

Fizeste as canções todas durante essa residência no Teatro Viriato, em Viseu?
Algumas são mais antigas – pelo menos os esboços iniciais – mas foram completadas ou limadas em Viseu. Mas a “Tipo do Ferro” e a “Forceps” nasceram mesmo na residência, num dia.

Gostaste da experiência?
Sim. Gostei da rotina, de não me ter de preocupar com nada. Estava tudo pago e tudo feito. Não tinha de pensar em lavar a roupa, estava a viver num hotel, a ir a um restaurante tipo buffet. Também gostei do isolamento, no geral, é algo que condiz comigo [risos]. Mas há coisas que mudaria. Talvez o sítio. Estava na cave do teatro, basicamente não tinha janelas.

Tipo bunker. Deve ser horrível.
Quando cheguei achei que não ia conseguir fazer ali nada, mas acabei por fazer tudo. Ao início ainda perguntei se não havia outra sala, com janelas. Ainda por cima Viseu é tão bonito. Mas não havia. Era aquilo. E acabou por ser mais fixe assim. Esteve-se bem.

Estares fechada num bunker influenciou de alguma forma o disco?
Acho que sim. Mas não sei. Não quero muito dar valor ao bunker [risos].

É justo. Até porque não gravaste lá. Foste para o estúdio do GNRation, em Braga, correcto?
Comecei a gravar no GNRation, mas fiquei doente e essas coisas todas que acontecem quando estás sob bué stress. Depois terminei aqui em Lisboa, quando me sentia apta para cantar.

O Leonardo Bindilatti esteve contigo ao longo de todo processo, ou só em Braga?
Não, ele só aparece em Lisboa. Mas depois foi ele que fez a mistura, por isso acaba por estar em todas as músicas, apesar de não ter estado presente na captação. Ele gravou as que sou só eu à guitarra: “Forceps”, “Tipo do Ferro” e “Elefante na Sala”. As outras foram captadas em Braga, mas tudo o que é de mistura e de efeitos de pós-produção foi o Leo. 

Musicalmente, é um disco muito variado. Gravado com diferentes pessoas, em vários sítios. Mas liricamente também. Há canções sobre amores novos, outros que acabam, algumas mais introspectivas. No meio disto tudo, há um tema transversal ao disco? 
Boa pergunta. Não tinha pensado nisso, mas acho que sim. Talvez a estrutura, o facto de ser quase alternada entre Júlia e eu, Júlia e eu, e depois acabar com a “Elefante na Sala”. Esse pingue-pongue, o facto de andar de um lado para o outro, é um bocado a cena de balançar e do vórtice, do rodopio. De cair para a frente e para trás. Metaforicamente faz tudo parte da mesma coisa, que é o benefício da dúvida. Por isso é que eu chamei o disco assim. Não por causa da faixa-título, mas porque a ideia de dar o benefício da dúvida engloba tudo.

  • 5/5 estrelas
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Não muito tempo depois, desliga-se o gravador. Como tem acontecido diariamente nas últimas semanas, Benefício da Dúvida volta a brotar das colunas. “Lobisomem” a abrir. Acaba com Maria Reis a repetir “má fortuna, erros meus” uma e outra vez e, logo a seguir, as manas reúnem-se para cantar “Virgem Maria”. A segunda faixa lembra a toada meio trad de certas músicas de Casa de Cima, derradeiro álbum das Pega Monstro. Júlia vai entrando e saindo de cena quando as canções e as circunstâncias o permitem. A bitola mantém-se alta. “Fórceps” é folk de combate; “Benefício da Dúvida” é excitação, corpos em festa, amores novos, abertura de coração e de espírito; Maria está outra vez sozinha em “Tipo do Ferro”, a escorregar para o abismo – uma relação desintegra-se; a melodia é pura melancolia. Magoa. E “Desaparece” continua a magoar, apesar de as palavras serem um bálsamo (“Num instante [ele/ela] desaparece e a vida continua/ Desperdiçaste tantas horas/ Na mesma pessoa/ Tranquiliza, pensa só em quem queres ser”) e do pandeiro de Júlia nos levantar do chão. E depois há “Elefante na Sala”, a última canção, hino indie-rock. Termina com uma espécie de cliffhanger: “Vai-se tornar interessante.” Com ela é sempre.

B.Leza. Qui 24. 22.00. 8€

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