Madrepérola começou a ser composto antes da gravidez do primeiro filho e acabou de gravar quando já o embalava nos braços. Regressou ao trabalho para se reencontrar. Quis procurar “um lado mais solar”, deixando-se levar por uma forte influência da música brasileira. Num meio onde a mulher é resumida a uma função decorativa e coisificada, colou os cacos e transformou as mais variadas dores em arte.
Há uma música em que dizes para aproveitarmos este disco porque pode ser o último.
Isso tem a ver com o facto de os discos estarem a morrer. É ingrato fazer maratonas de dois ou três anos de trabalho para serem consumidos na voragem da novidade. Tens que competir no meio do ruído das redes sociais, numa arena de vaidades, com o que te é mais especial e precioso. Vês muitos músicos com problemas de depressão e suicídio porque tens que “vender” a tua arte num mercado em que se vende de tudo. É um bocado perverso, parece que tens de perder a privacidade para ganhar a atenção das pessoas.
Achas que a tua carreira tem tido o reconhecimento devido?
Por um lado sim, por outro não sei. Dentro do hip-hop houve momentos em que não tive esse reconhecimento. Há uma parte do público e dos meus pares que não se identifica comigo nem com o estilo de rap que eu faço, mais poético, mais político-social. Quanto mais eu cheguei longe, menos próxima estive desse reconhecimento. Por outro lado, há muita gente que percebe que andei a mostrar que é possível uma mulher ter uma carreira longeva no hip-hop.
Além de haver poucas mulheres a fazer rap em Portugal, são poucas as que conseguem resistir no tempo.
Porque é difícil, de facto. Tens que quebrar a barreira da falta de auto-estima. Para uma mulher é mais pesado, culturalmente, ter a segurança de dizer que o meu trabalho é válido, que vale a pena mostrá-lo ao mundo. É preciso contrariar uma socialização que nos atira para o auto-boicote permanente.
O que é que a maternidade te ensinou sobre o empoderamento feminino?
Aprendi que é importante conectarmo-nos com o nosso lado biológico. Quando conseguimos comandar o nosso próprio processo reprodutivo, sentimo-nos empoderadas e invencíveis. Ser mãe é muito exigente em termos de entrega, de cansaço, de falta de liberdade. Mas ao mesmo tempo é lindo, é poético, é a coisa mais intensa que podemos experimentar.
Assusta-te trazer um filho a este mundo?
Se não consegues fazer um mundo melhor para os teus filhos, faz filhos melhores. Do ponto de vista ecológico, de facto somos muitos e não devíamos ter mais filhos. Mas, se nos deixarmos dominar pelo medo, deixamos de viver.
Alguma vez te prejudicou assumires que és feminista?
Em termos estratégicos, é sempre melhor quando os músicos são antissépticos, quando não opinam sobre as coisas e fingem que está tudo bem para não chatear ninguém e vender o máximo possível. Essa nunca foi a minha postura, eu sempre encarei a música como um megafone para as minhas causas e as minhas preocupações. Um artista, no verdadeiro sentido do termo, é muitas vezes incómodo, mesmo que isso custe uns concertos a menos. Todas as pessoas que têm um microfone na mão têm uma responsabilidade. Há que viver com isso, sem que se torne demasiado pesado ao ponto de não termos liberdade de criar.
A propósito do que aconteceu com o Valete [a música e o vídeo de “BFF” foram acusados de normalizar a violência contra a mulher], até que ponto é que a liberdade de expressão e a liberdade artística podem servir como escudo?
Desde que não entrem na difamação, no discurso de ódio, em coisas que estão prescritas na lei como limites, os artistas são completamente livres. Eu sou livre de criar e as pessoas são tão livres quanto eu de comentar e criticar. Às vezes temos a oportunidade de ter discussões interessantes sobre essas questões da liberdade criativa, do politicamente correcto no bom sentido do termo, da importância do simbólico, da forma como as minorias têm que ser protegidas e de criarmos uma cidadania mais inclusiva e justa. Mas depois entramos nestas espirais em que uns se ofendem com tudo e não há conversa possível.