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Chris Cornell: Uma vida em 12 canções

Chris Cornell, vocalista e guitarrista dos Soundgarden, foi, com Kurt Cobain e Eddie Vedder, um dos rostos do grunge de Seattle. O seu tempo acabou no dia 17 de Maio, aos 52 anos

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“Time is my friend ‘til it ain’t and runs out”. É assim que começa “Bones of Birds”, de King Animal, o último álbum dos Soundgarden. Na noite de 17 de Maio de 2017, após um concerto dos Soundgarden em Detroit, o tempo deixou de ser amigo de Chris Cornell – foi encontrado enforcado no seu quarto de hotel.

Cornell nasceu em Seattle em 1964. Aos nove anos descobriu uma colecção de discos dos Beatles abandonada na cave de um vizinho e passou os dois anos seguintes a ouvi-la em regime intensivo – é óbvio que a experiência lhe deixou marcas profundas, pois por trás da fúria metálica dos Soundgarden, as melodias beatlescas mostram-se por vezes bem vivas.

Aos 20 anos, em 1984, bem antes de haver Nirvana ou Pearl Jam, Cornell formou os Soundgarden, com o guitarrista Kim Thayil (nascido em Seattle de pais emigrados da Índia) e o baixista Hiro Yamamoto (de ascendência japonesa). Cornell começou por ocupar-se da voz e da bateria, mas depois a banda recrutou para este último posto Scott Sundquist, que daria lugar em 1986 a Matt Cameron. Foi com esta formação que gravaram o primeiro single, para a SubPop, e o primeiro álbum, Ultramega OK (1988), já na editora SST.

A estreia ainda tinha arestas por limar mas já estavam definidas as principais balizas da sonoridade Soundgarden: riffs metálicos (Led Zeppelin e Black Sabbath como referências mais evidentes) no extremo grave do espectro, complexidade rítmica, abrasão punk, psicadelismo gótico e ecos deformados de música indiana, e com a voz de Cornell a deslizar entre registos muito variados e adoptando frequentemente como modelo o metal e os falsetes paroxísticos de Robert Plant.

Chris Cornell: Uma vida em 12 canções

“Hands All Over”, dos Soundgarden

Ano: 1989

Álbum: Louder Than Love

Em Louder Than Love o songwriting progrediu significativamente e a atmosfera ganhou densidade mas, embora tendo obtido maior visibilidade, o álbum não subiu acima do lugar 108 no top de álbuns. “Hands All Over” é uma composição de Thayil assente num riff extraordinariamente simples, cuja monotonia é “desarrumada” pela bateria dançarina de Cameron.

“Outshined”, dos Soundgarden

Ano: 1991

Álbum: Badmotorfinger

Desentendimentos quanto ao processo criativo levaram à saída de Yamamoto, que foi substituído por Jason Everman, um ex-Nirvana, e, depois, por Ben Shepherd – estava completa a máquina criativa dos Soundgarden.

Badmotorfinger é um álbum de maturidade e “Outshined” é um bom exemplo do som Soundgarden: riffs pesadões, bateria poderosa e de precisão milimétrica, com uma métrica bizarra (as estrofes são em 7/4) e acentuações inesperadas a desequilibrar a brutalidade das guitarras. A voz de Cornell evoca o mundo do metal, mas os coros no refrão (“So now you know...”), têm a impressão digital dos anos passados a ouvir Beatles.

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“Rusty Cage”, dos Soundgarden

Ano: 1991

Álbum: Badmotorfinger

Outra faceta do som Soundgarden: a cavalgada rock’n’roll em tons tenebrosos e alucinados.

“Hunger Strike”, dos Temple of the Dog

Ano: 1991

Álbum: Temple of the Dog

Os Temple of the Dog foram uma banda efémera, formada por Cornell para prestar homenagem ao amigo Andrew Wood (1966-1990), falecido devido a uma overdose de heroína. Wood fora vocalista dos Mother Love Bone, uma das bandas pioneiras do grunge de Seattle, que integrara dois futuros Pearl Jam, Stone Gossard (guitarra) e Jeff Ament (baixo). Naturalmente, Gossard e Ament juntaram-se à homenagem, com Matt Cameron a ocupar-se da bateria. As canções do único álbum, homónimo, dos Temple of the Dog foram quase todas escritas por Cornell e entre elas destaca-se “Hunger Strike”, com a participação de Eddie Vedder, um dos poucos duetos rock que merece que se lhe tire o chapéu. As letras de Cornell tendem a ser enigmáticas e surreais, mas esta inclui dois versos que não deixam lugar a ambiguidades: “Não posso alimentar-me dos desvalidos/ Quando a minha taça já transborda”.

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“Black Hole Sun”, dos Soundgarden

Ano: 1994

Álbum: Superunknown

Em 1994, o grunge estava no auge, tudo o que vinha de Seattle era acolhido entusiasticamente, Kurt Cobain (que se suicidaria um mês depois da saída de Superunknown) era o Jesus Cristo dos adolescentes e jovens adultos, o quarto álbum dos Soundgarden ascendeu a n.º 1 nos top dos EUA e n.º 4 no top do Reino Unido.

Superunknown manteve a matriz dos álbuns precedentes, mas o songwriting sofisticou-se, as influências psicadélicas (psicadelismo negro, entenda-se) intensificaram-se e os ambientes diversificaram-se – “Half”, por exemplo, soa como uma versão sinistra e aditivada das “músicas indianas” dos Beatles.

“Black Hole Sun” foi um dos maiores êxitos dos Soundgarden e terá havido quem a confundisse com uma bonita balada – e algumas das muitas covers que dela foram feitas, assim a tresleram, sem perceber todo o negrume que jaz sob a bela melodia vocal.

“Spoonman”, dos Soundgarden

Ano: 1994

Álbum: Superunknown

“Spoonman” foi criada para a banda sonora original do filme Singles (1992), de Cameron Crowe, que coloca as relações sentimentais entre jovens casais sobre o pano de fundo da febre do grunge em Seattle, e em que Chris Cornell tem uma breve aparição na cena em que Cliff (Matt Dillon), um aspirante ao estrelato grunge, monta uma aparelhagem de som no carro da namorada, Janet (Bridget Fonda). Cornell surge também no filme com os Soundgarden, tocando “Birth Ritual”, outra das músicas compostas por Cornell para a banda sonora de Singles.

 

“Spoonman” foi tocado regularmente pelos Soundgarden na tournée de 1993 com Neil Young (o pai espiritual do grunge) e foi gravada, numa nova versão, para o álbum Superunknown. Assenta num ritmo de 7/4, que alterna com partes em 4/4 e 6/8 – as métricas complexas e “escorregadias” fazem parte da matriz dos Soundgarden – e tem a participação de Artis the Spoonman, um artista de rua que faz percussão com colheres (a que se juntam, em certas partes tachos e panelas percutidos por Matt Cameron).

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“Blow Up the Outside World”, dos Soundgarden

Ano: 1996

Álbum: Down on the Upside

Down on the Upside vendeu bem, mas menos do que Superunknown (foi ao 2.º lugar no top dos EUA e ao 7.º no do Reino Unido) e desiludiu parte dos fãs e da crítica. Quem via nos Soundgarden uma banda de metal adstringente e furioso viu uma traição e uma concessão ao “comercialismo” em canções como “Blow Up The Outside World”, cuja estrofe é (com “Head Down”, de Superunknown) das coisas mais beatlescas que Cornell compôs para a banda (embora o refrão seja Soundgarden vintage).

“Applebite”, dos Soundgarden

Ano: 1996

Álbum: Down on the Upside

Down on the Upside mistura canções na velha veia com incursões em territórios mais pop – em “Boot Camp” a voz de Cornell até adopta um registo próximo do de Sting – e atmosféricos. “Applebite”, hipnótica, minimal e ominosa (à maneira dos The Cure), com a voz de Cornell tornada irreconhecível pelo processamento e uma nuvem de guitarras psicadélicas e electrónica a acastelar-se no seu terço final, também terá contribuído para fazer debandar fãs de longa data.

Não foi a falta de ideias nem o insucesso comercial a determinar a dissolução da banda em 1997, mas a saturação causada pelas tournées.

No ano seguinte, Matt Cameron foi recrutado para tomar provisoriamente o lugar de Jack Irons nos Pearl Jam e acabou por ficar como membro permanente. Pelo seu lado, Cornell lançou, em 1999, um álbum a solo, ainda mais pop e beatlesco, Euphoria Morning.

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“Cochise”, dos Audioslave

Ano: 2002

Álbum: Audioslave

Se a ida de Cameron para os “vizinhos” Pearl Jam foi um passo natural, a associação, em 2001, de Chris Cornell aos três ex-Rage Against Machine – Tom Morello (guitarra), Tim Commerford (baixo) e Brad Wilk (bateria) – foi surpreendente, dados os poucos contactos estéticos entre os rap metal dos Rage Against Machine e o que Cornell fizera até então. O primeiro single, “Cochise”, acabou por mostrar que a aliança não era assim tão contra natura e que os músicos tinham sabido encontrar um terreno comum, balizado pelos riffs pesados de Led Zeppelin e Black Sabbath. Embora as músicas dos Audioslave tenham sempre sido creditadas ao colectivo, a marca de Cornell é óbvia e as influências de funk e rap dos Rage Against Machine estão quase ausentes.

Os Ausioslave lançaram mais dois álbuns – Out of Exile (20059 e Revelations (2006) – antes de se dissolverem em 2007 devido a desentendimentos pessoais e musicais e Chris Cornell regressou aos discos a solo, com Carry On (2007), Scream (2009), Songbook (2011) e Higher Truth (2015).

“Been Away Too Long”, dos Soundgarden

Ano: 2012

Álbum: King Animal

Entretanto, em 2010, os Soundgarden voltaram a juntar-se para concertos ao vivo, ao mesmo tempo que saía uma compilação, Telephantasm: A Retrospective. No ano seguinte saiu um álbum ao vivo e em 2012 um novo disco de estúdio, King Animal, que retoma o trajecto onde Down on the Upside se detivera, 16 anos antes – até o produtor é o mesmo, Adam Kasper. “Been Away Too Long”, logo a abrir, deita contas ao caminho percorrido: “Não podes regressar a casa/ Não, garanto-te que não podes/ Podes andar um milhão de milhas/ Sem chegar a lugar algum/ Eu fiquei sem lugar para onde ir”.

[Versão ao vivo nos Electric Lady Studios, Nova Iorque, 2012]

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“Rowing”, dos Soundgarden

Ano: 2012

Álbum: King Animal

A maioria dos regressos de bandas que foram grandes são fiascos, mas King Animal é um disco que não deslustra o passado dos Soundgarden e oferece um feliz compromisso entre continuidade e evolução. Disso é exemplo “Rowing”, que explora uma rudimentar matriz blues de forma minimal e mecânica – durante a primeira metade da canção não há riffs enérgicos ou sinais do típico drumming de Matt Cameron, nem oportunidades para mosh e stage diving. A meio da canção a sujidade e estranheza intensificam-se e, após um momento tangente às desconstruções do blues por Tom Waits, a canção ganha músculo e reaproxima-se do som dos Soundgarden.

A letra retoma o tema da canção de abertura, “Been Away Too Long”: de onde viemos, para onde vamos, o que nos faz mover. “Não sei para onde vou/ Limito-me a continuar a remar/ A continuar a puxar/ Tenho de remar/ Movimento é respiração/ E respiração é vida/ Parar é morrer”.

“Fell on Black Days”, dos Soundgarden

Ano: 1994

Álbum: Superunknown

“Fell on Black Days” é empurrada por um groove ronceiro mas inexorável: “Tudo aquilo que eu temia ganhou vida/ Tudo aquilo que combati tornou-se na minha vida/ Quando cada dia parecia saudar-me com um sorriso/ A luz do sol definhou e eu estou a cumprir/ A cumprir pena/ Porque caí nos dias negros/ Caí nos dias negros”. Às vezes, escrever uma canção pode ser uma forma de exorcismo, mas não foi o que se passou com “I Fell on Black Days”, pois Cornell voltou a deslizar para os dias negros. “Como podia eu saber/ Que poderia ser este o meu destino?”.

 

Final do concerto de 17 de Maio de 2107, em Detroit, num registo amador:

Obituário

  • Música
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Agora, na hora da morte de um poeta que sobreviveu ao álcool e às drogas e à psicanálise e ao budismo e à falência; um artista que sobreviveu até à fama e que encontrou, no fundo do seu próprio abismo, inspiração para um poemário e um cancioneiro de sentimentos e sensações que é porto de abrigo para o que nenhum antidepressivo alivia. 

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